Supostamente o maior repositório de conhecimento clássico do mundo antigo, guardião de todos os “livros” conhecidos na época. Construída pela dinastia Ptolemaica, de língua grega, no Egito do século III a.C., a Biblioteca de Alexandria teria contido centenas de milhares de rolos de papiro (até 700.000 segundo uma fonte antiga) como parte do esforço hercúleo de um rei para colecionar “todos os livros do mundo”.
Grandes mentes do período helenístico estudaram e ensinaram em Alexandria, uma capital cosmopolita no Mediterrâneo fundada por Alexandre, o Grande. O matemático e geógrafo Eratóstenes viveu lá, assim como Aristarco, o primeiro astrônomo a argumentar que os planetas orbitavam o sol. Eles e outros foram referidos como “chefes” da Biblioteca de Alexandria por vários autores antigos, e podemos facilmente imaginar esses gênios de barba e toga debruçados sobre pergaminhos dentro de um magnífico salão com colunas.
E então vem a parte trágica: Júlio César teria iniciado um incêndio que destruiu a biblioteca e isso, juntamente a posterior queda do Império Romano, seria responsável pela perda coletiva de conhecimento que mergulhou a civilização ocidental na Idade das Trevas.
Será que é verdade?
Por mais intelectualmente vibrante que Alexandria tenha sido e por maior que a Biblioteca de Alexandria pareça em nossa imaginação, “nossas informações reais sobre aquele período, e especificamente sobre a biblioteca, são bastante escassas”, diz Thomas Hendrickson, historiador de bibliotecas antigas e seus legados. “Se a Biblioteca de Alexandria realmente existiu, não temos nenhuma informação sobre ela. Mas mesmo a lenda da biblioteca parece ter sido uma enorme inspiração para todo o mundo antigo.”
A lenda começa com uma carta falsa. No século III a.C., exatamente quando a Biblioteca de Alexandria estava acumulando seu arquivo recorde de pergaminhos, um homem chamado Aristeas escreveu uma carta a seu irmão Filocrates. Aristeas afirmava ser um mensageiro do rei governante no Egito, Ptolomeu II Filadelfo. Em sua carta, Aristeas deu um relato em primeira mão de como a Biblioteca de Alexandria veio a existir e quão grande ela era.
A “Carta de Aristeas”, como é conhecida, fornece a descrição mais antiga da monumental Biblioteca de Alexandria, retratando-a como uma biblioteca verdadeiramente “universal”, com a intenção de coletar e traduzir para o grego todo o conhecimento do mundo antigo.
“O problema com a ‘Carta de Aristeas’ é que é uma falsificação total”, diz Hendrickson.
A maioria dos estudiosos data a carta um século depois (século II a.C.) e duvida da própria existência de Aristeas. A carta forjada é geralmente descrita como “propaganda” judaica destinada a mostrar a importância da tradução grega da Bíblia Hebraica (conhecida como Septuaginta). O autor da carta estava tentando magnificar o tamanho e a importância da biblioteca e afirmar que o próprio Ptolomeu II havia insistido que a Bíblia Hebraica fosse incluída nesse repositório de todo o grande conhecimento.
Mesmo alguns escritores antigos não falsificados opinaram sobre quantos volumes realmente existiam na Biblioteca de Alexandria, e essas estimativas variam enormemente. O historiador Roger Bagnall chamou as estimativas de seis dígitos de “extravagantes” e calculou que se cada autor grego conhecido do século III a.C. produzisse 50 rolos cada, isso ainda resultaria em apenas 31.250 volumes.
Enquanto o número real de pergaminhos na Biblioteca de Alexandria é nebuloso na melhor das hipóteses, uma coisa é clara: “Essa noção lendária de uma biblioteca como ‘biblioteca universal’ realmente inspirou bibliotecas reais”, diz Hendrickson.
Júlio César retornou da guerra alexandrina com grandes planos para construir uma biblioteca que rivalizaria com os Ptolomeus no Egito, mas foi assassinado antes que isso pudesse se concretizar. César Augusto assumiu a tarefa e construiu uma grande biblioteca na Colina Palatina. Líderes romanos posteriores construíram suas próprias bibliotecas, mas Hendrickson diz que não sabemos exatamente como essas bibliotecas funcionavam em uma sociedade amplamente analfabeta.
O próprio primeiro museu ou Mouseion, como era conhecido, também ficava em Alexandria. Sua função antiga também é objeto de acalorado debate entre historiadores e acadêmicos, mas seu nome – que significa “sede das Musas” – implica que era um local de pesquisa e produção criativa.
A famosa Biblioteca de Alexandria pode ter estado dentro do museu, segundo Estrabão, um filósofo e historiador grego que viveu na virada do milênio. Até agora, os arqueólogos não encontraram nenhum vestígio que aponte definitivamente para esta biblioteca.
“Você nunca encontrará uma biblioteca que tenha sido destruída mais vezes do que a Biblioteca de Alexandria”, diz Hendrickson. Isso porque os escritores antigos adoravam acusar seus inimigos de serem bárbaros tolos que incendiariam uma fortaleza do conhecimento.
Como mencionado, Júlio César geralmente é culpado porque ele próprio afirmou ter incendiado seu caminho para fora de Alexandria em sua guerra contra o rival Pompeu em 48 a.C. Imperadores romanos posteriores também saquearam Alexandria em suas campanhas militares, e em 391 um grupo de monges cristãos teria destruído o Serapeum, a biblioteca “filha” da lendária Biblioteca de Alexandria.
Embora essas antigas acusações de queima de livros fossem eficazes campanhas difamatórias, não há razão para acreditar que a Biblioteca de Alexandria foi, de fato, destruída. Poderia simplesmente ter caído em ruínas, escreveu o historiador Bagnall. Os rolos de papiro eram extremamente frágeis, nenhum rolo antigo sobrevive da região úmida do Mediterrâneo, ao contrário daqueles do clima mais seco do Egito.
O que é muito mais interessante para historiadores de bibliotecas como Hendrickson e Bagnall do que quantos livros a biblioteca possuía ou como foi destruída é como a própria ideia de uma biblioteca “universal” em Alexandria (lendária ou não) inspirou a criação de bibliotecas ambiciosas no Renascimento e na era moderna.
“Cada uma de nossas grandes bibliotecas contemporâneas deve algo à Biblioteca de Alexandria”, continuou Bagnall. Sem essa imagem antiga, talvez não tivéssemos algo como a Biblioteca do Congresso, a coisa mais próxima de uma biblioteca “universal” no planeta, com 51 milhões de livros catalogados e 173 milhões de itens totais, incluindo livros raros, mapas, partituras e gravações sonoras.
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