Aroldo Murá conta que hoje, Gerson Guelmann me manda mensagem lembrando que, nesta data, estamos há um ano sem Jaime Lerner. Respondo de pronto a Gerson, que foi dos mais importantes auxiliares de Lerner, de forma especial nos governos de JL. Sou tentado a partir para um texto hiperbólico em torno do urbanista, de quem também fui amigo, assim como de sua família – Fani, e as filhas Ilana e Andrea. Não há lugar para a hagiografia quando se examina o fantástico/ simples que Lerner nos revelou e implantou em Curitiba. A linearidade das observações bastam.
Volto à realidade de hoje, eu que vi os primeiros passos desse “iluminado” em sua grande aventura de defesa e valorização da cidade. Fomos apresentados nos anos 1960, por Aramis Millarch, o jornalista que foi vital para a divulgação inicial das propostas de Lerner, muitas das quais – graças – foram ampliadas mundo a fora. É o caso do BRT, hoje uma presença definitiva em centros como Seul. Isso sem mencionar uma de suas catequeses de maior cunho premonitório, a pregação em defesa do transporte de massa, a liberação da dependência do ser humano do automóvel.
E como não lembrar que, nas suas primeiras prédicas de urbanista revolucionário, não só oferecia ao mundo o sistema trinário de vias urbanas, como também pregava o que hoje é “lógico”: trabalho e moradia deveriam estar próximos, e a rua sendo devolvida ao pedestre, quando possível.
O Lerner daqueles dias – no final dos anos 1960 e começo dos 1970 -, era não apenas o inquieto arquiteto/urbanista ansioso por intervir na sua realidade mais imediata, Curitiba. Era verdadeiro Cidadão do Mundo com suas receitas surpreendentes, o que não diminuía seu patriotismo; e como tal, ele foi se mostrando um inconformado com o caos urbano que se avizinhava especialmente na sua Curitiba, a qual divisava com inteligência a partir da Rua Barão do Rio Branco, onde, sob as bênçãos de seu Felix e dona Elza, foi aprendendo, sob as marcas de uma família judia, a traduzir lições que o definiriam, anos depois, como um dos líderes do mundo. Tal como fez a revista Time, que o elegeu como uma das 100 personalidades nos anos 1990.
Lerner enxergava muito adiante de seu tempo, isso é óbvio. Tal como, até na construção da casa em que moraria com Fani e filhas (hoje sede do Instituto Jaime Lerner) já pregava e punha em prática a defesa ambiental. O telhado da casa recebeu, depois do telhado, cobertura vegetal, garantindo um ambiente térmico agradável, uma solução quase mágica para aqueles dias.
Lerner foi dessas raridades, encontráveis, uma entre milhões, enxergando além de seu tempo. Com essa matéria onírica, foi construindo as pontes da intervenção urbana que livrou-nos do caos hoje reinante na maioria das grandes cidades do mundo. E começou pelo simples da valorização de um plano diretor que, sem estrangular o crescimento urbano, fizesse que a cidade passasse a ser o centro do interesse da cidadania. E, claro, acentuando a importância do IPPUC, hoje não mais referencial para Curitiba, laboratório de ideias que identificamos muito como “Sorbonne do Juvevê”.
O artigo que o arquiteto Salvador Gnoato escreve no blog, hoje sobre Lerner, e o livro “A Rua e a Bruma, a Régua e o compasso”, de Dante Mendonça, recém lançado, são capitais para o dimensionamento do grande salto dado há 50 anos.
Os testemunhos dessa revolução urbana são essenciais para que, indo muito além das indagações ao Google, nos perguntemos se, porventura, não estamos parados no tempo, vivendo sob o signo de marketing da “Curitiba bem cuidada”. Trata-se de um mote capenga, que não embute qualquer compromisso com o futuro, nem vai apontando caminhos para o presente. Tudo marchando contra os postulados que esse “iluminado” um dia semeou em Curitiba, numa notável parceria com Rafael Dely, Lubomir Ficinski, Angel Bernal, Ceneviva, Cassio Taniguchi…