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sábado, dezembro 21, 2024
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A Chave

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Por Sergio Viralobos, do Frente Fria

Hoje é o dia da semana que normalmente faço a resenha de um livro, mas vou inovar um pouco. Quero resenhar um filme que vi recentemente no YouTube: “Todo Roqueiro é Gente Fina: história da banda A Chave”.

A Chave foi uma banda de rock formada em Curitiba, sendo precursora do rock paranaense. Em sua formação clássica contou com Ivo Rodrigues (vocalista), Paulo Teixeira (guitarra e vocais), Carlão Gaertner (baixo) e Orlando Azevedo (bateria) e boa parte das músicas compostas pelo grupo, tiveram a participação do poeta Paulo Leminski.

Criada em 1969, a partir de uma banda de covers dos Beatles chamada “Os Jetsons” , A Chave tinha um som de rock pesado e iniciou vários processos de animação na vida cultural da capital paranaense, que estão presentes até hoje: shows ao ar livre em praças públicas e parques (show de inauguração da Praça do Atlético); concertos de rock em teatros (primeiros shows de rock no Guairinha e Guairão); e grandes shows de rock em ginásios de esportes (Palácio de Cristal do Círculo Militar) e estádios ao lado de bandas e artistas nacionais de destaque daquela década, além de participar de importantes festivais de rock como o Camburock, em Santa Catarina. Tocou ao lado de Secos e Molhados, Rita Lee & Tutti Frutti, Mutantes, O Terço, Made In Brazil, Casa das Máquinas, Joelho de Porco, Som Nosso De Cada Dia, Bixo da Seda e chegou até abrir um show do Bill Haley And His Comets, no Guairão (1975). Além de suas apresentações por todo o Estado do Paraná, o grupo também se apresentou em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais. Em 1969, chegaram a apresentar um programa na TV Paraná Canal 6, dirigido pelo cineasta e escritor Valêncio Xavier. Em 1977, houve a gravação do compacto com os sucessos da banda “Buraco No Coração” e “Me Provoque Pra Ver” (as duas músicas escrita em parceria com Leminski), pela gravadora GTA.

A banda dissolveu-se em maio de 1979 e logo após, o líder e vocalista Ivo Rodrigues e Paulo Teixeira entraram para a banda Blindagem, outro grupo do rock paranaense que manteve estreita parceria com Paulo Leminski. Ao longo de sua carreira, A Chave tornou-se a mais importante banda de rock de Curitiba e continua cultuada até hoje. Abriu na década de 70 todas as portas e mostrou o caminho das pedras para as centenas de bandas que surgiram na cidade após a sua dissolução.

Em 2004, os integrantes do grupo receberam de dois fãs, donos da loja Vinyl Club, de Curitiba, um CD pirata com doze faixas de músicas de shows ao vivo e os dois sucessos do antigo compacto. Com a ajuda e patrocínio de uma rádio rock de Curitiba, o grupo reproduziu este CD, em duas edições limitadas (a segunda, após a primeira edição sumir dos pontos de vendas rapidamente), acompanhados de um show para comemorar os 25 anos de extinção do grupo. O mais curioso de toda essa história é o fato da banda ter pirateado o seu próprio disco pirata – sem conhecer o autor da pirataria – gerando um dado inédito e hilário no mercado fonográfico brasileiro. E, também constatar que 25 anos depois de sua dissolução, causa ainda o maior frisson na cena musical curitibana. A Chave, mesmo extinta, continua abrindo portas e indicando rumos no cenário do rock paranaense e brasileiro, provando que um trabalho de qualidade resiste à pátina do tempo.

Agora voltemos ao documentário “Todo Roqueiro é Gente Fina: história da banda A Chave” (2014), dirigido por Yuri Vasselai. “Era difícil provar que A Chave tinha sido um expoente no cenário do rock, porque as informações corriam muito no boca a boca”, conta Vasselai. O filme conta com entrevistas importantes de Paulo Teixeira, Carlão Gaetner e principalmente Orlando Azevedo, o mais desconhecido dos chavistas. Mas não deveria ser assim, no documentário ficamos sabendo que ele foi o verdadeiro líder da Chave. Normalmente, as pessoas creditam a liderança de uma banda ao vocalista, no caso Ivo Rodrigues, por sua presença predominante nos palcos. Ivo era um doce de pessoa, mas sempre duvidei que ele pudesse ser o cabeça de um movimento cultural tão impactante quanto foi A Chave. Recentemente, conheci Orlando Azevedo e consegui entender como funcionavam as engrenagens daquela banda.

Orlando Azevedo nasceu na Ilha Terceira de Açores, em Portugal e, antes de ser músico de rock, esteve envolvido com a fotografia desde muito cedo. “Sabe quando era criança, eu ficava fascinado olhando as revistas National Geographic e Magazine que meu pai assinava e o meu avô também tinha praticamente a coleção desde o primeiro número”. Azevedo chegou ao Brasil em 1963, com 13 anos, pois seu pai veio para cá em função de uma missão da Food and Agriculture Organization (FAO), um departamento das Nações Unidas. “Eu comecei a me apaixonar por imagem, principalmente depois de grandes vertentes que são uma constante o meu trabalho, que é exatamente: o ser humano e a paisagem (…) ou seja, patrimônio humano e natural”. Orlando, que fez um curso de fotografia por correspondência, contou que “não tinha essas coisas todas que nós temos hoje, naquela época tinha apenas um curso por correspondência que era do Instituto Universal”.

Ele trabalhou como repórter até entrar para a banda “A Chave” e depois deste período de dez anos, voltou a se dedicar exclusivamente à fotografia, no começo dos anos 1980. Ele recorda que fez muita propaganda e passou a atender “grandes contas”, como Boticário, Bamerindus, Batavo e Britânia”. Até que foi convidado pelo prefeito Rafael Greca, nos anos 1990, para ser diretor de Artes Visuais da Fundação Cultural de Curitiba. Neste período de quatro anos, criou o Museu da Fotografia Cidade de Curitiba, o primeiro do gênero na América Latina. Orlando realizou também a Bienal Internacional de Fotografia, nos anos de 1996, 1998 e 2000. Nestas edições, os fotógrafos e fotógrafas participantes eram convidados por ele a doar algumas de suas produções, que foram incorporadas ao museu ao longo dos anos, compondo um acervo fotográfico.

Além dessas oportunidades, a formação de Orlando durante sua trajetória profissional foi atravessada por outras experiências, como a produção de onze foto-livros. Um destes foto-livros é a “Coleção Coração do Brasil” (2002), fruto de um projeto de longo prazo iniciado em 1999 e concluído em 2002, no qual Orlando fez diversas expedições pelo Brasil em conjunto com o jornalista Fabiano Camargo. “Tento fazer um mapeamento poético do Brasil oculto”, explicou o fotógrafo em uma entrevista para a Folha de Londrina (2012). Sobre a realização deste trabalho, houve dificuldade de captação financeira para viabilizar o projeto pela Lei Rouanet. Orlando conta que vendeu dois carros para poder “segurar o projeto” e pontua que a fotografia autoral “exige um estudo aprofundado, uma metodologia e investimento”.

Em 2021, o Museu Oscar Niemeyer (MON) apresentou a mostra “O Labirinto da Luz”, que celebrava os 50 anos de fotografia de Orlando Azevedo. Foram 237 imagens, com curadoria de Rubens Fernandes Junior. Agora, ele está empenhado em levar esta exposição para São Paulo. Boa sorte, Orlando!

Feito este parêntesis fotográfico, transcrevo aqui partes do depoimento de Orlando Azevedo para o documentário da Chave, temperados com algumas frases pinçadas de nossas conversas:

Orlando Azevedo – “No começo eram “Os Jetsons” um grupo cover de filhinhos de papai –– tocava Beatles entre outras coisas. Um dia me chamaram pra ir no ensaio da banda e passou a ser um vício direto, crônico e na veia. Me convidaram então para dirigir artisticamente o grupo. Eu tinha vindo pra Curitiba pra ficar algum tempo, e todo final de ano, voltava pra Portugal, onde tinha acesso a discos que não se escutava aqui. Passamos então a ter informação privilegiada e pudemos nos direcionar para coisas muito mais pesadas e para uma postura verdadeiramente rock. A mudança do nome da banda passou a ser urgente e surgiram três opções: Psico, Janela e A Chave. Há uma votação e o escolhido é “A Chave”. Acontece então uma campanha publicitária, criada por mim, em que forramos a cidade de cartazes com perguntas como: “você sabe o que é um micróbio gigante?“ ; “você sabe a diferença entre um elefante e um micróbio gigante?” e Curitiba foi invadida por um questionamento do que seria A Chave.

No réveillon de 1969, “A Chave” tinha que tocar em Palmeira, no interior do Paraná, e o então baterista deu o cano. Alguém tinha que sentar naquela bateria e o escolhido fui eu. Foi então, em 1971, que eu, o Carlão, Fernando Bittencourt e Ricardo Voight, o Meningite, (pai do criador do Ebanx) passamos a morar num local que se tornou uma grande lenda em Curitiba: a Casa Branca, na rua Padre Anchieta, perto da Torre da Telepar. O nome era uma sátira à Casa Branca americana e aproveitamos para pintá-la inteirinha de branco e ali era nosso estúdio, onde ensaiávamos diariamente, e nossa moradia. E além do puta estúdio que construímos, havia vários ateliês de criação: de artes gráficas, artes plásticas, de fotografia, de cinema, de texto… A ideia era que aquele polo de criatividade se transformasse no Laboratório de Comunicação e Criação A Chave.

Certa vez, batem na janela do meu quarto lá pelas 3 da manhã e era o Paulo Leminski, acompanhado de um fotógrafo e um psiquiatra, apelidado de Psico. Aí foi amor ao primeiro baseado. O Paulo era essencialmente um sedutor. Contei que tínhamos uma ideia de musicar o livro “Alice no País das Maravilhas” e ele disse que também havia pensado nisto. A partir daí, começamos a fazer uma pesquisa sobre palavras que fossem mais plásticas, que soassem melhor numa letra de rock pesado. Era um projeto chamado “Em Prol de um Português Elétrico”.

Em 1974, pegamos um empréstimo com a CR Almeida e fomos pra São Paulo comprar o equipamento mais moderno para nos profissionalizarmos definitivamente. Minha bateria era uma octoplus que dava inveja aos outros bateristas. Na volta, nos internamos numa chácara em Campina Grande do Sul para criar o primeiro grande show da Chave, totalmente de lavra própria: o Ponta Cabeça. Estreamos em abril de 1975 no Teatro da Reitoria e um pouco depois tocamos no Guairão lotado para abrir o show do Bill Haley And His Comets.

A gente consegue segurar esta peteca por dez anos, com esta formação, por todo o Brasil, tocando com Made In Brasil, Mutantes, Casa das Máquinas, Joelho de Porco, etc. A Rita Lee dizia que A Chave era sua banda de rock preferida. Partimos então pra gravar o primeiro disco: um compacto duplo sem capa, gravado no estúdio do Eduardo Araujo, em São Paulo. Nós completamente sem grana e claro que não aconteceu nada: as rádios daqui, como sempre, simplesmente não tocaram. Pois bem, em 2004, uns meninos que tem uma loja de disco em Curitiba, foram pra São Paulo e descobriram, em uma feira de colecionadores, um CD pirata com doze faixas de músicas de shows ao vivo e os dois sucessos do antigo compacto. Então, aproveitamos para fazer um CD pirata nosso a partir do pirata paulistano e lançamos num show revival de grande sucesso.

A Chave termina laconicamente num show no Teatro TUC, num pequeno show, sem público, chamado sintomaticamente de “Socorro! Socorro!”. Era 1979, o fim de uma era de dez anos com a mesma formação. Ivo Rodrigues e Paulo Teixeira vão pro Blindagem, que antes se chamava Movimento Parado. Acho que isso diz tudo sobre o que acho desta banda.”

Cheguei em Curitiba em 1979, no ano do fim da Chave, que nunca assisti ao vivo. O primeiro show de rock que vi aqui foi justamente da Blindagem, no mesmo Teatro TUC. Lembro que gostei das letras, do vocal do Ivo e da competência dos músicos, mas achei o som meio velho, puxando pra Rolling Stones, que detestávamos por ser o que só se tocava na época em Curitiba. Pelas voltas que o mundo dá, calhou que o livro “Uma fina camada de gelo”, de Eduardo Mercer, a bíblia do rock curitibano, tivesse como título de seu terceiro capítulo: “Pré-históricas e Primordiais: A Chave e Contrabanda”. Ter o grupo que ajudei a criar comparado com a mítica Chave foi uma das maiores alegrias que pude sentir na vida.

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