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terça-feira, novembro 5, 2024
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Centenário: conheça os artistas e o que queriam os modernistas de 1922

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Praça Ramos de Azevedo, centro da capital paulista. Ladeado por duas ruas estreitas, está o suntuoso prédio do Theatro Municipal de São Paulo. Da escadaria externa, uma mulher entra no teatro, ainda fechado para o público, com um livro em mãos. Da escadaria acarpetada do saguão principal, entre estátuas de mármore, ela abre o livro e começa a recitar Ode ao Burguês, conhecido poema da obra Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade. A voz potente, ouvida por poucos, ecoa pelos corredores do prédio que, 100 anos antes, ouviu pela primeira vez esta mesma poesia.

O episódio acima celebra e rememora a Semana de Arte Moderna, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922. A leitura do poema é parte integrante do processo de gravação para o programa Caminhos da Reportagem, da TV Brasil. A poeta é a slammer (que participa de batalhas de poesia) e atriz Luz Ribeiro, que traz sua interpretação da obra de Mário de Andrade, considerada por muitos como um dos marcos inaugurais do modernismo brasileiro.

Além de Mário, nomes hoje conhecidos do grande público, como o escritor Oswald de Andrade, o compositor Heitor Villa-Lobos, o escultor Victor Brecheret e os artistas plásticos Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro, participaram da Semana.

Marcada por controvérsias, a Semana de 22 é ainda hoje objeto de estudo para artistas e pesquisadores que, de diversas formas, refletem sobre os processos artísticos propostos pelos primeiros modernistas, também chamados de modernistas canônicos. De um lado, estão pesquisadores que refletem a Semana como um grande momento de ruptura para as artes no país; de outro, estudiosos que defendem que a Semana foi somente um evento entre os diversos espaços de discussão e criação sobre o modernismo espalhados pelos estados brasileiros.

Apesar de a Semana de 22 ser considerada um marco – senão transformador, mas simbólico – para as artes plásticas, música, literatura, teatro e arquitetura brasileiras, as propostas começaram a ser gestadas anos antes, por artistas e escritores de diversas partes do país. Daí a necessidade de compreender não somente a Semana e seu legado, mas também os passos anteriores à sua realização.

O ANTES – A cidade, os parnasianos e os pré-modernistas

Em 1972, para celebrar os 50 anos da Semana de Arte Moderna, Carlos Drummond de Andrade publicou o texto A Semana continua, no Jornal do Brasil. Para ele, a Semana foi “um grito no salão bem-comportado, e para dar grito não se pede licença ao distinto auditório: grita-se”.

O excerto, detalhado no prefácio da obra Semana de 22 – antes do começo, depois do fim, de José e Lucas De Nicola, não versa somente sobre a Semana de 22, mas sobre o espaço onde ela foi realizada: o Theatro Municipal de São Paulo, fundado em 1911.

O Theatro, bem como outras edificações construídas no período, representa o modelo de cidade que São Paulo aspirava ser. No site da instituição, o texto de apresentação traz indícios desse desejo: “a luxuosa construção, visivelmente influenciada por teatros de ópera da Europa, foi erguida como símbolo aspiracional da alta sociedade paulistana, que com a fartura do ciclo do café desejava uma casa de espetáculos à altura de suas posses e pretensões europeias para receber os grandes artistas da música lírica e do teatro”.

Em franca expansão, a cidade, que até o final do século 19 tinha ares de vilarejo, começava a apresentar os indícios da megalópole que se tornaria. “Em 1872, que é o ano que foi feito o primeiro censo populacional no Brasil, ainda nos tempos do Império, São Paulo contava com pouco mais de 31 mil habitantes. Ao longo da década de 1920, a população vai chegar a mais de 580 mil habitantes. Houve um crescimento exponencial num período muito curto de tempo, acompanhado de uma grande inversão de capitais, que criou a infraestrutura que trouxe riqueza”, diz o pesquisador Lucas De Nicola.

Dessa forma, a Semana de 22 é realizada num espaço recém-construído pela aristocracia paulistana que, com olhos voltados para a Europa, busca fazer de São Paulo uma capital da cultura erudita.

No que se refere à arte, o olhar também era voltado para as terras europeias. O parnasianismo, movimento vigente, originalmente francês, que se intensificou em meados do século 19, propunha a retomada de uma cultura clássica. O preciosismo da escrita, a valorização da estética e a métrica rigorosa eram as tônicas da escola literária parnasiana. Um dos maiores expoentes do parnasianismo brasileiro é o escritor Olavo Bilac. Um de seus mais conhecidos poemas, A um poeta, representa com clareza os ideais do parnasianismo, tanto na métrica quanto no conteúdo:

É em meio a esse contexto sociocultural que começa a se formar um grupo de jovens artistas, muitos deles filhos da aristocracia paulistana, interessados em política e cultura brasileiras.

Num pequeno apartamento no centro da capital paulista, o escritor e jornalista Oswald de Andrade promovia encontros com outros escritores e artistas. A garçonnière da Rua Libero Badaró, onde o autor viveu entre os anos de 1917 e 1918, era frequentada pelos principais intelectuais paulistas do pré-modernismo, como Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia, Léo Vaz, Edmundo Amaral, entre outros. Nestes encontros, os frequentadores do apartamento escreviam um diário, que foi alimentado entre maio e setembro de 1918. Amigo de infância de Oswald, Pedro Rodrigues de Almeida batizou o diário de O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo.

O escritor José Roberto Walker, autor do livro Neve na Manhã de São Paulo, diz que o pequeno apartamento era um espaço onde Oswald reuniu o que havia de mais moderno naquela época em São Paulo e que o diário “virou um documento da vida cultural e da vida social daquele período e aquilo se tornou uma espécie de primeiro documento do modernismo em São Paulo”.

Apesar de os encontros promovidos por Oswald tratarem de temas que viriam a ser importantes para a criação da Semana de 22, foi nas artes plásticas que o movimento começou a tomar forma. Os precursores foram Lasar Segall e Anita Malfatti.

Segall, lituano radicado na Alemanha, chega ao Brasil pela primeira vez em 1913, para expor em São Paulo e em Campinas (SP). Inicialmente de natureza impressionista, Segall passa a se interessar pelo expressionismo a partir do ano seguinte, 1914. Somente em 1923 o pintor se muda para o Brasil e fixa residência na capital paulista.

Malfatti, brasileira, foi para a Europa, em 1910, para estudar na Academia Real de Belas Artes de Berlim, capital alemã. O primeiro contato com o expressionismo fez com que ela, ao retornar ao Brasil, em 1914, apresentasse a Exposição de Estudos de Pintura Anita Malfatti, realizada em São Paulo.

Foi com a “Exposição de Pintura Moderna – Anita Malfatti”, também realizada na capital paulista, entre os dias 12 de dezembro de 1917 e 11 de janeiro de 1918, que a artista entrou no radar modernista. A mostra é considera por diversos pesquisadores um marco na história da arte moderna brasileira.

Em entrevista à TV Brasil, o escritor Jason Tércio, autor do livro Mário de Andrade – em busca da alma brasileira, diz que a exposição de Anita marcou a entrada do Brasil na modernidade cultural e artística.

“Foi uma exposição que causou bastante impacto não só no público, como também ajudou a reunir esse grupo que mais tarde iria promover a Semana de Arte Moderna. Foi a partir desses contatos, nessa exposição, inclusive com a própria Anita, que não era conhecida de nenhum deles, que Di Cavalcanti, Guilherme de Almeida… todos eles acabaram se encontrando nessa exposição e, a partir daí, começaram a manter contatos. O Mário de Andrade, inclusive, considera que o modernismo começou com essa exposição em 1917”.

Atualmente exposta na Pinacoteca de São Paulo, a tela Tropical – inicialmente chamada de Negra Baiana – era uma das obras presentes na exposição de 1917. Doada para o museu pela própria artista em 1929, a obra é uma das mais representativas do período modernista. Cercada de elementos tipicamente brasileiros, a mulher representada no quadro, negra e trabalhadora, traz à tona um dos principais anseios dos primeiros modernistas: construir as bases para pensar uma cultura genuinamente brasileira, com olhos para o Brasil real e não para o Brasil que se pretendia europeu. 

Em entrevista à TV Brasil, a curadora-chefe da Pinacoteca, Valéria Piccoli, diz que a obra traz uma representação iconográfica que era recorrente nas obras de arte brasileiras desde o século 19, mas que o colorido da obra não é naturalista, porque a artista não quer tornar a imagem próxima do real. “Pelo contrário, ela trabalha muito nesse contraste do verde, do laranja, que são cores que se chocam, que não se harmonizam, e que criam justamente essa vibração, esse certo incômodo quando você olha para elas”.

Mais tarde, em 1921, um almoço no Belvedere Trianon, point da alta sociedade paulistana da época, firma o compromisso da primeira geração de modernistas paulistanos. Em um irônico discurso em homenagem ao escritor Menotti Del Picchia, Oswald de Andrade confere o “primeiro grito coletivo dos modernistas”, de acordo com o pesquisador José De Nicola. Para o autor, “a gente pode dizer que a Semana foi preparada ao longo desse ano, de 9 de janeiro de 1921 [data do almoço citado acima] até 13 de fevereiro de 1922 [data de início da Semana de Arte Moderna]”.

No discurso, Oswald de Andrade elucida o desejo dos primeiros modernistas em representar a cidade, suas transformações e seus desvarios:

“S. Paulo é já a cidade que pede romancistas e poetas, que impõe pasmosos problemas humanos e agita, no seu tumulto discreto, egoísta e inteligente, as profundas revoluções criadoras de imortalidades”.  

(Trecho do discurso de Oswald de Andrade, de 9 de janeiro de 1921. Retirado da obra Semana de 22 – antes do começo, depois do fim, de José e Lucas De Nicola, página 238)

O DURANTE – Semana prematura, divertida e inútil 

“Oh! Semana sem juízo. Desorganizada, prematura. Irritante. Ninguém se entendia. Cada qual pregava uma coisa. Uns pediam liberdade absoluta. Outros não a queriam mais. O público vinha saber. Mas ninguém lembrava de ensinar. Os discursos não esclareciam coisa nenhuma. Nem podiam, porque não havia tempo: os programas estavam abarrotados de música. Noções vagas; entusiasmo sincero; ilusão engraçada, ingênua, moça, mas duma ridiculez formidável. […] A Semana de Arte Moderna não representa nenhum triunfo, como também não quer dizer nenhuma derrota. Foi uma demonstração que não foi. Realizou-se. Cada um seguiu para seu lado, depois. Precipitada. Divertida. Inútil.”

(Trecho do periódico Crônicas de Malazarte-VII, publicado na Revista América Brasileira em abril de 1924. Retirado da obra Mário de Andrade – em busca da alma brasileira, de Jason Tércio, página 185)

Entre 1923 e 1924, Mário de Andrade publicou o periódico mensal Crônicas de Malazarte, na revista América Brasileira. O trecho acima é publicado em 1924, na 28ª edição da revista. O excerto traz uma avaliação da Semana e, também, termos já usados anteriormente por Mário para descrever o trabalho dos modernistas. “Inútil”, diz Mário, tanto na crônica quanto no prefácio de Pauliceia Desvairada, intitulado “Prefácio Interessantíssimo”, considerado o primeiro texto que pontua os anseios dos modernistas participantes da Semana.

“Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil. (…)
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei.”

(Trecho inicial do Prefácio Interessantíssimo, da obra Pauliceia Desvairada, de Mário de Andrade, lançada em 1922)

A escolha destas palavras por Mário de Andrade – “desorganizada”, “prematura”, “irritante”, “inútil” – faz parte da concepção artística proposta não somente pelo autor, mas por outros participantes da Semana. A “blague”, sinônimo de piada, caminha junto com a seriedade.

Para o pesquisador José de Nicola, a Semana de 22 “foi um grande grito coletivo, grande grito público que, na verdade, representou uma série de conquistas, de renovações, de tentativa de inovar esteticamente a arte brasileira, ao longo de toda uma década. E a Semana acabou sendo esse momento em que aflorou, em que esse grito se tornou público”.

A Semana de Arte Moderna, ao contrário do que o nome indica, durou apenas três dias. Literatura, artes plásticas e música foram a tônica da programação. Dentre os escritores participantes, além de Mário de Andrade, estão Oswald de Andrade, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Sérgio Milliet, Tácito de Almeida, Ronald de Carvalho, Luís Aranha e Agenor Fernandes Barbosa. Nas artes plásticas, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, John Graz, Regina Graz, Zina Aita, Yan de Almeida Prado e Antônio Paim Vieira. Na escultura, Victor Brecheret, Wilhelm Haarberg e Hildegardo Velloso. Na música, Heitor Villa-Lobos, Ernani Braga, Lucília Villa-Lobos, Guiomar Novaes, entre outros.

Tarsila do Amaral, artista-referência do modernismo brasileiro, não participou do evento. Contudo, de acordo com Tarsilinha do Amaral, sobrinha-neta da artista, Tarsila sabia das articulações para a realização da Semana. “Apesar de ela não ter participado da Semana, ela ficou sabendo através das cartas da Anita [Malfatti], pois elas eram amigas. A minha tia estava em Paris estudando”, diz.

Boa parte dos artistas participantes da Semana, assim como Tarsila, viveu um tempo em terras europeias. O contato com movimentos artísticos, como o expressionismo e o cubismo, trouxe uma gama de aprendizados que, de volta ao Brasil, foram mesclados a figuras, cores e formas que remetiam ao imaginário nacional, que traziam à tona um Brasil indígena, africano, caboclo e caipira que, até então, não era objeto de vislumbre artístico.   

No campo da literatura, a escrita livre, sem métrica, a experimentação, a renovação da linguagem, o coloquialismo, o “escrever sem pensar”, a sátira, o deboche e a ironia são as características propostas para o texto. Uma clara afronta aos ideais propostos pelo movimento artístico vigente: “No início do século 20, o modelo de poesia no Brasil era um modelo parnasiano, que era o soneto parnasiano rimado com verso de ouro certinho, quadradinho. É exatamente contra esse movimento que os modernistas vão lutar. Eles vão combater esse modelo de poesia”, enfatiza José De Nicola.

Durante o segundo dia do evento, Ronald de Carvalho leu o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, que não participou da Semana devido a uma crise de tuberculose. O texto, vaiado pelo público, falava diretamente aos poetas parnasianos.

 sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – “Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

(Trecho de “Os Sapos”, poema publicado em 1919, no livro “Carnaval”, de Manuel Bandeira)

Assim como Bandeira, Mário e Oswald também foram vaiados. Mário por recitar Ode ao Burguês e Oswald pela leitura do trecho da obra Os Condenados.

Na música, um dos principais expoentes foi o maestro Heitor Villa-Lobos. Desde 1914, com o lançamento de Danças Africanas, o compositor já criticava o modelo de produção europeu. Os bailados Amazonas e Uirapuru, ambos de 1917, firmam o compromisso do autor em unir a música erudita da época com as tradições do folclore e da música regionalista brasileira.

Para o maestro Júlio Medaglia, a criação de Villa-Lobos não partiu do nacionalismo, e sim, de grandes estudos. “Se você conhece as músicas de Villa-Lobos, da segunda década do século 20, parece Strawinski, Ravel… Ele se informou na cultura ocidental da época, muito para depois elaborar então o nacionalismo. Por isso que criou relacionamento, polêmica, entre a cultura universal e nacional, em vez de fazer uma coisa provinciana. A música dele teve universalidade”, disse.

Nas artes plásticas, as obras de Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Di Cavalcanti, John Graz e Victor Brecheret também causaram impacto pelo traço e cor diferenciados, mas, de acordo com José de Nicola, a recepção do público foi melhor.

“Você tinha as obras do Brecheret que, em termos de artes plásticas, foi o grande nome. O nome que encantou todos os participantes da Semana. O pessoal entrava por essa porta, andava por esse salão que nós estamos e se deparava com coisas nunca vistas em termos de arte. As esculturas do Brecheret eram uma proposta totalmente diferente do que se conhecia”, diz o pesquisador.

Apesar do traço, da forma e do conteúdo pouco convencionais, os artistas plásticos participantes da Semana ainda refletiam sobre os caminhos estéticos que adotariam futuramente. Um bom exemplo é Di Cavalcanti. Uma das obras apresentadas por ele durante a Semana, Amigos, de 1921, integra a exposição de longa duração da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ao analisar a obra, a curadora Valéria Piccoli diz que a tela é distinta de outros trabalhos posteriores do artista.

“O que a gente vê aqui é um Di Cavalcanti que não era o Di Cavalcanti que a gente conheceu depois. O que a gente vê é uma imagem muito mais monocromática e é muito mais baseada nos desenhos, nos traços, que tem a ver com esse ponto da caricatura. E que depois vai se transformar numa obra muito mais sobrevida, uma obra que tem um traço muito mais solto. E que vai dar à pintura dele outro sabor, bastante diferente”, diz.

A repercussão da Semana nos jornais foi, majoritariamente, negativa. O tom jocoso e as manifestações artísticas, até então, incompreendidas, fizeram com que a Semana fosse entendida como piada. A fúria dos jornalistas era motivo de celebração para Mário de Andrade, que os chamava de “araras”. Em carta enviada a Menotti Del Picchia, que a publicou em sua coluna no jornal Correio Paulistano, o escritor diz:

“Conseguimos enfim o que desejávamos: celebridade. (…) Realmente, amigo, outro meio não havia de conseguirmos a celebridade. Era só assim: aproveitando a cólera dos araras.

(…) Compreendes que com todas essas qualidades só havia um meio de alcançar celebridade: lançar uma arte verdadeiramente incompreensível, fabricar o carnaval da “Semana de Arte Moderna” e… deixar que os araras falassem.

Caíram como araras. Gritaram. Insultaram-nos. Vaiaram-nos. Mas o público já está acostumado com descomposturas: não leva a sério. O que fica é o nome e um sentimento de simpatia que não se apagam mais da memória do leitor.

Estamos célebres! Enfim! Nossos livros serão lidíssimos! Insultadíssimos, celebérrimos. Teremos nossos nomes eternizados nos jornais e na História da Arte Brasileira.”

(Carta de Mário de Andrade a Menotti Del Picchia, publicada originalmente no jornal Correio Paulistano. Retirada do livro 1922 – A semana que não terminou, de Marcos Augusto Gonçalves)

Cem anos depois, o escritor Jason Tércio referenda o que foi escrito por Mário de Andrade. “A Semana foi um evento bastante controverso e cheio de limitações, mas colocou o país no mapa mundi da cultura”.

O DEPOIS – Os antropófagos e o desvendar dos Brasis 

“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.”

(Trecho inicial do Manifesto Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, publicado em 1924)

O DEPOIS – Os antropófagos e o desvendar dos Brasis

“A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.”

(Trecho inicial do Manifesto Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, publicado em 1924)

Após a Semana de Arte Moderna, os artistas participantes passaram por situações diversas de encontros e rupturas. Contudo, a partir das sementes germinadas antes e durante a Semana, muitos deles passaram a incorporar, cada vez mais, práticas do universo modernista ao seu repertório artístico.

No Manifesto Pau-Brasil, de 1924, Oswald de Andrade, assim como outros modernistas de primeira geração, passou a repensar o lugar do povo brasileiro nas artes. Elementos das culturas indígena, negra e cabocla, bem como temas de natureza regional e folclórica tornaram-se mais comuns nos textos, traços, cores e sons produzidos pelos modernistas.

Mais tarde, com a publicação do Manifesto Antropófago em 1928, Oswald passa a chamar de “antropofagia” o movimento de “deglutir” a cultura estrangeira e, a partir da incorporação de elementos da cultura nacional, transformá-la em algo genuinamente brasileiro. Para o autor, a antropofagia deve ser vista como um processo diverso e coletivo de formação de uma outra identidade cultural para o país.

“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos.

De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi that is the question.”

(Trecho inicial do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, publicado em 1928)

No que se refere ao processo de criação poético, Oswald faz uso do verso livre, do coloquialismo e da ironia para reimaginar a terra brasilisErro de português, um de seus poemas mais conhecidos, é um bom exemplo destas práticas, tanto na forma quanto no conteúdo.

Quando o português chegou
Debaixo d’uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

(Erro de Português, poema publicado em 1927, no livro Primeiro caderno de poesia do aluno, de Oswald de Andrade)

 professora Maira Mesquita diz que a proposta do autor é incitar uma dúvida no leitor. “Você acha que ele vai falar de alguma coisa relacionada à gramática, à língua portuguesa e, na verdade, é sobre o sujeito português que colonizou. Então, ele vem trazer uma crítica à colonização, a esse processo de aculturação”, explica a pesquisadora.

De acordo com os ideais antropófagos, Tarsila do Amaral passa a incorporar elementos da cultura brasileira nas cores e nas figuras representadas em suas obras.

Curador do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), Fernando Oliva diz que “as cores da Tarsila, chamadas cores brasileiras, terracota, maneira como ela imprimia nos azuis e ocres tons terrosos, que foram associados a uma ideia de Brasil, uma ideia de luminosidade brasileira e, portanto, parte desse primeiro modernismo que ressaltava muito essa ideia de identidade brasileira”.

O quadro Antropofagia, de 1929, em exposição da Pinacoteca do Estado de São Paulo, demarca com clareza a dimensão das culturas negra e indígena nas obras da artista. A curadora Valéria Piccoli explica que a obra é uma junção de elementos de outras duas obras: A Negra, de 1923, e Abaporu, de 1928.

Abaporu, que em tupi-guarani significa “antropófago”, é considerado seu trabalho mais célebre. Trata-se, também, da tela brasileira mais cara do mundo, com valor estimado em US$ 40 milhões. Atualmente, o quadro faz parte do acervo do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba).

Em 1928, mesmo ano de finalização de Abaporu e da publicação do Manifesto Antropófago, é publicada outra obra que busca, também, desvendar as entranhas do povo brasileiro. Trata-se de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário de Andrade, considerada sua obra-prima.

Se em Pauliceia Desvairada o autor retrata a vida e os costumes no ambiente urbano por meio da poesia, em Macunaíma, texto em prosa, Mário de Andrade concentra a narrativa em dois espaços, a selva amazônica e a selva de pedra, representada pela cidade de São Paulo. Apesar de a obra se concentrar majoritariamente nestes dois lugares, o anti-herói Macunaíma transita por diversas regiões do país em busca da pedra mágica muiraquitã, presente de Ci, a Mãe do Mato, seu grande amor. A pedra perdida acaba nas mãos de Venceslau Pietro Pietra, o Piaimã, gigante comedor de gente representada pela figura do burguês que vive na capital paulista. De difícil classificação, devido à combinação de diferentes gêneros, a obra é hoje um dos grandes clássicos da literatura brasileira.

Para o escritor Jason Tércio, a obra não é de fácil leitura, já que tem uma linguagem bastante revolucionária, com vocábulos de todas as regiões brasileiras e palavras que não se encontram nem no dicionário. “[O livro] foi recebido com muita estranheza e até rejeição também, por que como rotular? Ele não era um romance no sentido convencional de contar uma historinha, com começo, meio e fim. Não era uma crônica, não era um ensaio. Causou um forte impacto, foi resultado das pesquisas do Mário de Andrade sobre o Brasil, a grande riqueza regional que o Brasil tem, cultural. Ele quis sintetizar nesse livro toda a cultura brasileira e a geografia também”.

A pesquisa para Macunaíma, assim como para outras obras e projetos de Mário de Andrade, é fruto do desejo do autor em conhecer as diversas faces da cultura brasileira. Em 1924, o escritor viaja com outros artistas por terras mineiras, em momento que ficou conhecido como “caravana modernista”. De maio a agosto de 1927, viajou “do Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, por Marajó até dizer chega”, conforme escreveu em um relato da viagem. De novembro de 1928 a fevereiro de 1929, o escritor viajou por Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte.

A impressões do escritor, relatadas em diários e crônicas para jornais, foram compiladas no livro O turista aprendiz, organizado em 1976 por Telê Ancona Lopez, pesquisadora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP).

A partir de 1935, quando Mário de Andrade fundou o Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, do qual se tornou o primeiro diretor, o trabalho com as pesquisas folclóricas torna-se uma política pública. Nesse mesmo ano, criou a Discoteca Pública Municipal e convidou a pianista e pesquisadora Oneyda Alvarenga para assumir a direção do espaço.

De fevereiro a julho de 1938, Mário enviou um grupo de pesquisadores ao Norte e ao Nordeste do país. Batizada de “Missão de Pesquisas Folclóricas”, a expedição gravou, fotografou, filmou e estudou diversas melodias cantadas em festas e rezas. Foram registradas manifestações populares em cidades dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão e Pará.

Na bagagem, os pesquisadores trouxeram instrumentos musicais, anotações de campo e registros musicais, fílmicos e fotográficos que fazem parte do acervo histórico da discoteca que, hoje em dia, leva o nome de Oneyda Alvarenga e está localizada no Centro Cultural São Paulo, no centro da capital paulista.

Para o escritor Jason Tércio, “Mário de Andrade tinha como objetivo abrasileirar o Brasil” e este é um dos maiores legados não só do escritor, mas de vários outros artistas e pesquisadores modernistas.

O AGORA – Cem anos e algumas lições

“Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição”. A frase foi dita por Mário de Andrade durante a conferência “Movimento Modernista”, que celebrava, em 1942, os 20 anos da Semana de Arte Moderna.

Hoje em dia, com o centenário, pesquisadores têm enfatizado a necessidade de repensar a própria Semana de 22 como marco inaugural do modernismo no Brasil.  

Para o pesquisador Lucas De Nicola, o modernismo não foi um movimento único.

“Existem várias propostas, várias manifestações. A Semana de Arte Moderna é a expressão de um modernismo que foi formado a partir desse grupo aqui em São Paulo. Não que não existam outras possiblidades. E, de fato, aqui em São Paulo houve uma aproximação desses artistas com elementos da elite cafeeira, que estava interessada em transformar São Paulo num centro importante culturalmente. Essa questão também é fundamental a gente compreender”.

A aquisição, pelo governo de São Paulo, de um dos quadros de Tarsila do Amaral, demonstra bem os anseios da elite paulistana em fazer da cidade um centro cultural moderno. O quadro São Paulo, finalizado pela artista em 1924, foi adquirido em 1925 para compor o acervo da Pinacoteca.

Para a curadora Valéria Piccoli, a obra representa os núcleos de modernidade da cidade de São Paulo. “A gente vê a ponte de metal, que é a ponte do Vale do Anhangabaú, o bonde, o poste de luz, o edifício em construção… Você vê todos esses elementos. Simbolicamente você representa essa potência do desenvolvimento.”

Na mesma linha, Valéria corrobora também com o cuidado ao demarcar o pioneirismo da Semana de 22. “Obviamente, havia muitas coisas acontecendo no Rio de Janeiro, em Belém, em outras partes do Brasil. Você tem aí vários modernismos acontecendo em diversos lugares do Brasil. Porém, esse momento [a Semana de 22] é escolhido pela historiografia como esse momento inaugural, digamos, da modernidade no Brasil. Mas é preciso ver com muita cautela”.

Um dos grandes legados da Semana de 22 é a ocupação dos espaços pelos artistas e a maneira pela qual estas pessoas projetam suas vozes nestes espaços. Para o pesquisador Lucas De Nicola, a Semana surge do incômodo que alguns artistas passavam a sentir diante daquele mundo que viviam.

“E acho que o legado que a Semana deixa é não temer em pensar e criar a partir dessas incertezas que se apresentam diante de si. A ideia dessa coragem de você enfrentar seus próprios incômodos com o contexto no qual você vive. Um legado cada vez mais necessário.”

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