O Rio Amazonas abriga uma extraordinária biodiversidade de espécies de peixes, com aproximadamente 2.500 já devidamente catalogadas. Entretanto, estima-se que quase metade das criaturas marinhas que habitam esse vasto curso d’água, com extensão de 6.400 quilômetros, permaneçam ainda desconhecidas pela ciência.
Durante estudos voltados a piranhas e pacus, com o objetivo de melhor avaliar a vital biodiversidade íctica amazônica, uma equipe internacional de pesquisadores identificou uma nova espécie de pacu, um peixe herbívoro aparentado às piranhas e que apresenta dentes similares aos dos seres humanos.
Além de seus peculiares dentes perolados, a nova espécie exibe marcações corporais laranjas e pretas bastante proeminentes, incluindo uma distinta barra vertical preta que se estende pelo seu flanco. Tais marcas, segundo os cientistas, assemelham-se ao símbolo do Olho Ardente de Sauron, o vilão da aclamada obra literária e cinematográfica “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien. Essa semelhança inspirou o nome Myloplus sauron atribuído ao peixe, conforme estudo publicado na revista Neotropical Ichthyology.
De acordo com a co-autora do estudo, Victória Pereira, pós-graduanda em Biologia pela Universidade Paulista, a referência à cultura pop teve por objetivo chamar atenção para a espécie recém-descoberta e para os esforços de preservação da biodiversidade amazônica.
A nova espécie não é a única a receber denominação inspirada no Senhor das Trevas tolkieniano. Em maio de 2023, um gênero de borboletas com manchas semelhantes a olhos nas asas também foi batizado em alusão ao célebre símbolo da trilogia. Há ainda registros de uma espécie de perereca, um besouro coprófago e um gênero de dinossauros nomeados em referência ao mesmo personagem.
Além de Myloplus sauron, os pesquisadores identificaram a espécie Myloplus aylan, que apresenta uma barra preta ligeiramente mais larga no flanco. Ambas pertencem ao gênero Myloplus, inserido na família Serrasalmidae, que compreende as espécies de piranhas e pacus.
Conforme observado no estudo, a diferenciação entre essas espécies pode ser dificultada devido à estreita relação e semelhança entre piranhas e pacus. Além disso, tanto pacus quanto piranhas podem exibir mudanças na aparência ao longo de diferentes estágios de vida, e machos e fêmeas frequentemente apresentam características distintas, o que também contribui para dificultar a identificação precisa das várias espécies, segundo o Museu de História Natural de Londres.
As espécies Myloplus sauron e Myloplus aylan possuem dentes achatados e obtusos adaptados à mastigação de plantas, contrastando com os dentes afiados das piranhas, mas similares aos de outros pacus. Embora algumas espécies de piranhas sejam conhecidas por sua dieta carnívora, todas as espécies de pacus são primariamente herbívoras.
Anteriormente, essas duas novas espécies haviam sido agrupadas junto a outro peixe, Myloplus schomburgkii, devido ao padrão compartilhado da marca preta no corpo arredondado. No entanto, através de inspeção mais detalhada e análise de DNA, os pesquisadores constataram tratar-se de três espécies distintas que compartilham o chamativo padrão de coloração.
Segundo Pereira, os cientistas pretendem estudar mais profundamente Myloplus sauron e Myloplus aylan a fim de ampliar o conhecimento sobre sua evolução e relação com outras espécies.
O professor assistente Matthew Kolmann, do Departamento de Biologia da Universidade de Louisville, que não esteve envolvido no novo estudo, ressalta que pesquisadores que estudam pacus já reconheciam há algum tempo a existência de “múltiplas espécies escondidas à vista”. Kolmann acrescenta que as dimensões da Bacia Amazônica e sua inacessibilidade fazem dela uma região de constantes descobertas, demandando o esforço de gerações de cientistas para expandir o conhecimento sobre a área.
Os pacus desempenham um importante papel em seu ecossistema, principalmente por serem responsáveis pela disseminação de sementes através de sua dieta baseada majoritariamente em frutas, sendo, portanto, vitais para o crescimento de árvores da floresta tropical e outras plantas. Esses peixes tendem a espalhar sementes longe das plantas-mãe, contribuindo para a expansão da floresta e limitando a propagação de doenças facilitadas pela aglomeração de árvores, conforme explica Kolmann.
Ao identificar as espécies presentes em determinados ecossistemas, os pesquisadores poderão direcionar de forma mais eficaz os esforços de conservação para proteger animais ameaçados ou em risco, particularmente em áreas sob ameaça de destruição de habitat, como é o caso da Amazônia.
Nas palavras de Kolmann: “Corremos o risco muito real de perder milhares, senão centenas de milhares de espécies antes mesmo de tomarmos conhecimento de sua existência e, consequentemente, jamais compreendermos como essas espécies contribuem para um ecossistema saudável e funcional”. Ele ressalta que “inventariar quais espécies são encontradas, onde e quando, é o primeiro passo para quaisquer futuros esforços de conservação”.