Sergio Viralobos
Cheguei a Curitiba em 1979 e no início não tinha amigos. Então comecei a frequentar a Cinemateca, que passava filmes de arte incríveis para aquela época. Lá vi o novo cinema alemão, clássicos indispensáveis, o cinema marginal brasileiro e, principalmente, vi “Aluminosa Espera do Apocalipse”, de Fernando Severo, Rui Vezzaro e Peter Lorenzo: um Super 8 maravilhoso feito por pessoas que frequentavam o lugar. Essa é a história que quero recordar hoje.
A Cinemateca de Curitiba foi um espaço cultural criado num momento em que toda a cidade se transformava sob a batuta do então jovem prefeito Jaime Lerner. Inaugurada em 1975, já na administração de Saul Raiz, a Cinemateca funcionava no Museu Guido Viaro, no Largo da Ordem, e foi responsável pela formação de uma geração de realizadores cinematográficos que deram cara ao cinema paranaense. Em 1998 ela ganhou uma nova sede, na Rua Presidente Carlos Cavalcanti, no São Francisco, onde se encontra até hoje.
A Cinemateca de Curitiba funcionou também como espaço de pesquisa e preservação do cinema paranaense, atividades sempre incentivadas por seus ex-diretores Valêncio Xavier e Francisco Alves dos Santos. “A Cinemateca criou em torno de si toda uma geração de realizadores, pesquisadores, interessados, e, especialmente, de amantes do cinema. Trouxe inúmeros cursos de gente famosa do cinema nacional e exibia cinematografias do mundo todo, coisa impossível naquela época, tanto pela ditadura como pela inexistência de um circuito que mostrasse esse tipo de filmes”, diz a jornalista Miriam Karam, que realizou o documentário “Geração Cinemateca”, lançado em 2022.
Autora de diversos documentários para TVs, Miriam fez especialização em cinema na FAP (Faculdade de Artes do Paraná) com ênfase em produção. Entre os realizadores paranaenses ela cita Elói Pires Ferreira, autor de dois longas: “O Sal da Terra” e “Curitiba Zero Grau”, além de muitos curtas premiados; Berenice Mendes, diretora de “A Classe Roceira” e outros; o diretor e montador Pedro Merege, Beto Carminatti, Rui Vezzaro, Fernando Severo, Homero Teixeira de Carvalho e Nivaldo Lopes (Palito), autor de “A Guerra do Pente”, entre vários outros.
Na opinião de todos os envolvidos no movimento Geração Cinemateca, Valêncio Xavier-, já falecido, foi o personagem fundamental para sua eclosão. Paulistano de nascimento, Valêncio mudou-se aos 21 anos de idade para Curitiba, onde trabalhou na TV Paranaense (atual RPC TV) e na afiliada da Rede Tupi, a TV Paraná (atual CNT). Neste meio, escreveu dramas e chegou a dirigir episódios do Globo Repórter.
Atrás das câmeras, agora voltado ao cinema, atuou como diretor, assistente de direção, montador, roteirista e consultor. Dirigiu vídeos como: “O Pão Negro – Um Episódio da Colônia Cecília” de 1993 e “Os 11 de Curitiba, Todos Nós”, entre outros. Recebeu o prêmio de “Melhor Filme de Ficção” na IX Jornada Brasileira de Curta-metragem, por “Caro Signore Fellini” de 1980.
Criou, em 1975, a Cinemateca de Curitiba, ligada à Fundação Cultural, com o auxílio de Francisco Alves dos Santos. Também exerceu a função de diretor em museus e espaços culturais da capital. Nas letras, Valêncio Xavier escreveu narrativas em jornais e revistas, como: Nicolau, Revista USP e o caderno Mais! da Folha de S. Paulo. Foi colunista do jornal Gazeta do Povo de 1995 a 2003. Como um dos representantes do movimento de literatura experimental, ganhou boas críticas na imprensa nacional ao escrever vários livros de ficção, como o festejado “O Mez da Grippe”.
Em sua homenagem, foi criado em 2007 pelo Governo do Paraná e por proposta da atriz Itala Nandi, o Prêmio Valêncio Xavier, dado àqueles que se destacaram no meio cultural nacional brasileiro.
Para este artigo da Frente Fria, consegui quatro testemunhais inéditos de Berenice Mendes, Fernando Severo, Rui Vezzaro e Beto Carminatti, pessoas de importância fundamental para o surgimento da Geração Cinemateca. Vamos ao depoimento da Berenice:
BERENICE MENDES: “Nascida em Curitiba, em 1977 fui aprovada em Direito na Universidade Federal do Paraná. Apesar de gostar da matéria, me interessei mais pelo cineclube do diretório de Direito. Para se ter uma ideia, havia dezessete cineclubes nos diversos cursos da UFPR. No Brasil, eram cerca de dezesseis mil cineclubes, quase todos ligados ao movimento estudantil . Em 1979 conheci Francisco Alves dos Santos, que era Secretário Geral da Cinemateca de Curitiba (parecia cargo do partidão). Ele convidou a mim e minha amiga Lu Rufalco pra fazer um curso de cinema. Foi uma paixão, um impacto. O curso durou uns três meses e ainda rodamos um curta metragem chamado “Sensibilize-se” sobre a trajetória do Guido Viaro. Também participei da equipe do filme “Caro Signore Fellini” de Valêncio Xavier. Ainda acompanhei a finalização destes filmes em São Paulo, uma puta lição de Cinema. A personalidade de Valêncio era marcante, conversávamos por horas e sempre brigávamos no final, mas amava ele, era um dínamo criativo.
Quanto ao pessoal da Geração Cinemateca, trabalhei com o Rui Vezzaro na produção de um filme maravilhoso chamado “A Casa Iluminada”, com roteiro em cima de um conto do Dalton Trevisan, que acabou não autorizando sua exibição, por isso acabou rebatizado de “Noturno”. Rui era um menino encantado. Fui na casa de madeira em que morava no Portão, no fundo da casa dos pais humildes. Seu quarto era muito especial, perfumado por incensos, com cortinas que trançavam pelas paredes e almofadas pelo chão. Já o Fernando Severo tinha uma alma de engenheiro, fazia tudo com racionalidade e precisão. Era muito articulador e tentava mostrar pras autoridades municipais e estaduais a importância do cinema como indústria econômica e sua necessidade de financiamento. Íamos juntos pros encontros nacionais, representando o Paraná. Outra pessoa fundamental foi Peter Lorenzo, o grande diretor de fotografia da geração, além de ser muito colaborativo com toda a turma. Ele mudou para Florianópolis, onde criou um curso de cinema que é referencial no Sul. Outros personagens importantes eram o Peninha (José Roberto Braga Portella), que foi técnico de som da maioria dos filmes feitos na época, além dos montadores Pedro Merege e Homero Carvalho, que mais tarde mudou pro Rio de Janeiro e criou a área de filmes da Fiocruz, onde se produzem filmes sobre Saúde.
Em 1986, fiz “A Classe Roceira”, com produção de Lu Rufalco, minha companheira de tantos filmes. Brinco com ela que quanto mais o tempo passa, “A Classe Roceira” mais fica clássica. O MST considera este filme a imagem da gênese do movimento. Naquele momento, havia nove milhões de famílias sem terra e que começam a se instalar em barracas de lona nas estradas de todo país, com grande impacto político. Fiz o curta com latas de filme que ganhei de prêmio num festival e as locações foram todas no oeste do Paraná. Até hoje escrevem teses de mestrado e dissertações sobre a obra.
Mais tarde entrei na área administrativa do Cinema, sendo nomeada, entre outros cargos, gerente Executiva de Licenciamentos da TV Brasil, no Rio de Janeiro, onde pude implantar o PRODAV no Fundo Setorial de Audiovisual , que era um programa de financiamento de coprodução entre a TV e o Cinema. Em 2015, produzimos mais de quarenta séries, para se ter uma ideia do efeito do programa.
A Geração Cinemateca foi um milagre que aconteceu na minha vida. Foi a abertura pra transcender a rotina da família tradicional curitibana. Foi a possibilidade de enlouquecer, de criar, de produzir algo que ficará.”
A parceria entre Berenice Mendes e Lu Rufalco foi tema de um ensaio chamado “Berenice e Lu em arquivos de cinema”, escrito por Ana Claudia Camila Veiga de França.
“Pude acessar o arquivo da Documenta Produções Cinematográficas, a produtora que Berenice e Lu fundaram na década de 1980. A Documenta guarda hoje rolos de negativo, fitas em vídeo, roteiros, storyboards, cartazes, recortes de jornais e revistas. Berenice e Lu se conheceram na Faculdade de Direito, na Universidade Federal do Paraná. Era final da década de 1970 e alguns cineclubes serviam não apenas para projeção de filmes, mas para debates políticos, em um período no qual o Brasil vivia sob a ditadura civil-militar. “O Encouraçado Potemkin, mil vezes!”, brinca Lu, para contar que juntas organizaram muitas sessões de cinema pelo movimento cineclubista. Logo se aventuraram pelos cursos práticos da Cinemateca de Curitiba. Juntas, realizaram filmes como Atenção Realidade (1979), Como sempre (1980), Comunidades Rurbanas (1982), O Foguete Zé Carneiro (1984), Londrina (1985), A Classe Roceira (1986) e Vítimas da Vitória (1994). Pelos jornais descubro também que a “morena mignon” é também “firme e segura”, na opinião de Aramis Millarch. Soa desconcertante a ênfase masculina de Lélio Sotto Maior Jr., para quem Berenice “é um dos poucos curitibanos a ter uma visão estrutural de cinema”, ao mesmo tempo que elogia sua caligrafia cinematográfica glaubereisenteiniana. Há destaque para sua liderança, Berenice foi fundadora e presidenta da seção paranaense da Associação Brasileira de Documentaristas. O Drama da Fazenda Fortaleza seria o primeiro longa de Berenice e Lu, um drama épico de amor, vingança e traição, orçado em 700 mil dólares. Apesar de não ter chego às filmagens, mobilizou muito trabalho (elenco, cenários, figurinos, locações, cerca de 600 storyboards!). Lu, na opinião de Francisco Santos, foi da “nova geração de cineastas paranaenses” quem “levou a atividade de produção a sério”. “Mulher, cineasta…simples, não?” é o título de um artigo de 1996, com uma pergunta que ecoa por todo o conjunto. Além de manchas do tempo, os documentos contêm traços importantes sobre a presença não apenas de Berenice e Lu, mas de outras cineastas, jornalistas e artistas. Há, no entanto, uma ausência maior de registros sobre mulheres nos arquivos públicos, o que Ana Simioni e Maria Eleutério (2018, p. 22) apontam como “um índice dos diferentes modos como as mulheres participaram das diversas esferas da vida social de um país”. Por isso, em diálogo com Rachel Soihet (2014, p. 78), entendo que “a abordagem biográfica pode, enfim, ajudar a restituir a multiplicidade das experiências femininas, a multiplicidade de maneiras como vivem seus constrangimentos, a multiplicidade de caminhos que trilham para se afirmar como indivíduos plenos”. É no cruzamento de documentos e de longas conversas que tenho buscado reconstruir as experiências de trabalho de Berenice e Lu no cinema. Com disposição, é possível encontrar nas margens de arquivos indícios de quem eram e o que fizeram as mulheres no cinema brasileiro.”
Principal expoente da Geração Cinemateca, Fernando Severo começou a rodar filmes entre o fim da década de 1970 e o começo dos anos 1980, no Paraná.
“Quem faz cinema não cria do nada, é preciso uma boa base de conhecimento do que os grandes mestres fizeram”, conta o apaixonado pela arte que dirigiu seu primeiro curta-metragem em 1979. Chegando à capital paranaense aos 17 anos, Fernando Severo acompanhou a inauguração da Cinemateca de Curitiba em 1975.
“Foi minha perdição. Ela tinha uma programação riquíssima e oferecia cursos livres de cinema que comecei a frequentar”, fala, destacando que a atração pela arte o fez largar a Engenharia Civil que cursava na época. Fernando é mestre e doutor em Comunicação e Linguagens e foi eleito membro da Academia Paranaense de Letras.
Natural de Caçador (SC), Severo, que já foi diretor do MIS-PR, trabalhou com diversas bitolas, tendo sido um dos mais importantes realizadores de cinema Super 8 do Estado, reconhecido no Brasil e internacionalmente. “Hu” (1979) é considerado o primeiro filme experimental feito por aqui. Nos anos 80, o Paraná foi pioneiro na feitura e popularização do Super 8 no Brasil. Seu baixo custo, fácil manuseio de câmeras, maior margem de ex¬perimentação e pesquisa de linguagem estimularam os jovens a fazerem seus próprios filmes. Daí surgiram os festivais de Super 8. No caso do Paraná houve quatro empreendimentos mais significativos, a saber: o Festival Brasileiro de Filme Super 8 (1974-75), a Mostra Nacional do Filme Super 8 (1975-79), o Festival do Filme Super 8 (1977) e a Mostra do Filme Superoito da Região Sul —Abertura 8 (1980). Dentre esses quatro festivais, dois têm destacada importância para o desenvolvimento das produções superoitistas: o Festival Brasileiro, sob iniciativa e coordenação de Sylvio Back, realizado tanto em 1974 como em 1975 no pequeno auditório do Teatro Guaíra, e a Mostra Nacional, promovida ao longo de cinco anos pela ex Escola Técnica Federal do Paraná (atual UTFPR) sob coordenação de Rosane Câmera. Na sua edição de 1979, o grande destaque foi o filme “Aluminosa Espera do Apocalipse”, dirigido por Fernando Severo, Rui Vezzaro e Peter Lorenzo. Detalhe: a princípio o filme foi desclassificado por ser considerado hermético, mas houve uma reconsideração e no final, acabou ganhando o prêmio especial do júri.
Em 16mm, Severo fez “O Mundo Perdido de Kozák”, sobre a vida e a obra de Vladimir Kozák, tcheco naturalizado brasileiro que morou em Curitiba por mais de 40 anos, filmando aspectos urbanos e rurais do Brasil, notadamente indígenas no interior do Estado e na região amazônica. Foi premiado como melhor filme no XXI Festival de Cinema de Brasília e vencedor de outros 16 prêmios nacionais.
Em 35mm, Severo fez curtas-metragens de grande qualidade que foram pouco vistos pelo público local, por exemplo: “Século XX: Primeiros Tempos” (1993), curta-metragem para a série Panorama Histórico Brasileiro, produzida pelo Itaú Cultural; ou “Visionários” (2002), documentário poético com trilha sonora de Harry Crowl, que registra os últimos vestígios de dois santuários construídos no Norte do Paraná por pequenos agricultores, nos anos 1960 e 1970, inspirados por visões místicas, voltando ao tema de “Aluminosa Espera do Apocalipse”; ou ainda “Os Desertos Dias” (1991), ficção sobre um militante político latino-americano que se refugia no litoral do Paraná, onde vive na constante expectativa de ser descoberto e eliminado. O filme tem roteiro escrito a seis mãos, com José Rubens Siqueira e Valêncio Xavier.
Fernando fala de algumas premiações, como o Kikito no Festival de Cinema de Gramado, em 2009, com o longa-metragem “Corpos Celestes”. “Depois, em outros anos, ganhei mais prêmios no Festival e no de Brasília ganhei seis prêmios pelo mesmo filme”, conta. Ele fala de um prêmio que recebeu no Festival Internacional de Curta-Metragem de Clermont-Ferrand, na França, que lhe rendeu uma citação no jornal francês Libération em 2004.
Agora vamos ao seu depoimento exclusivo para a Frente Fria:
FERNANDO SEVERO: “Cheguei em Curitiba em 1975 e logo comecei a frequentar a Cinemateca. Em 1977 fiz um curso de Super 8 e nunca mais parei de filmar. Valêncio Xavier foi fundamental para criar aquela cena: fazia milagres com o pouco dinheiro que conseguia nas repartições públicas da cidade. Não foi só o primeiro diretor da Cinemateca, foi também o primeiro pesquisador de filmes do Paraná, além de ser o primeiro preservador de filmes do Estado. Valêncio morou em Paris nos anos 50, onde frequentava sua famosa cinemateca. Essa experiência ele trouxe para cá. Conseguiu câmeras de Super 8 para filmarmos, trazia celebridades pra dar cursos quase de graça, sempre buscava mostrar o melhor da produção nacional e internacional do Cinema da época, entre outras façanhas. Foi contemporâneo de outro dínamo, o Reynaldo Jardim, que dirigiu o MIS por volta de 1981, mas pegou o aparelho cultural muito desestruturado e acabou perdendo a sede. Trabalhei lá nesta época e a única coisa boa na gestão de Jardim foi a doação de filmes Super 8 para outros cineastas, sugerida por mim.
Eu, o Rui e o Peter Lorenzo tínhamos o Grupo Experimental de Cinema Primeiro Plano, que organizou um circuito de cine clubes, editou uma revista de cinema (Tela), promoveu debates, festivais, mostras. Logo no seu início, surgiu a filmagem de “Aluminosa Espera do Apocalipse”. Rui e Peter foram filmar em Colorado, no interior do Paraná. O Rui fez uma versão audiovisual com slides do material, onde havia a leitura do Genesis e música do Villa-Lobos. O Rui me deu o material bruto e disse: monte como quiser e eu coloco seu nome no filme. Montei em um mês e tive que restaurar varias cenas. Peguei cenas com filtro vermelho filmadas ao acaso e dei um sentido, por exemplo. Foi um trabalho de direção também, o roteiro foi escrito na montagem. O Vezzaro inscreveu Aluminosa no Festival de Cinema da Escola Técnica só no seu nome. O Reynaldo Jardim era um dos jurados e o filme ganhou um dos prêmios mais importantes. Foi feita uma revisão na questão dos créditos e já inscrevemos o filme no Festival de Gramado como um coletivo de direção de Rui Vezzaro, Fernando Severo e Peter Lorenzo. Lá também causou grande impacto, vencendo o prêmio de melhor filme em Super 8, e gerou uma matéria do famoso crítico Jairo Ferreira na Folha de São Paulo.
Em seguida, filmei “Escura Maravilha”, em que emprestei uma câmera e fiquei filmando um tempão nos cemitérios de Curitiba. Foi premiado no Festival Grife (Grupo de Realizadores Independentes de Filmes Experimentais), em São Paulo, então o mais importante do Brasil. Outro Super 8 que rendeu prêmios e elogios do Jairo Ferreira foi o “Vitrines”, dirigido pelo Vezzaro e montado por mim. Meu último Super 8 foi “Jardins Suspensos”, de 1983, com assistência e câmeras pelo jornalista Fernando Tupan. Tenho um projeto aprovado na Fundação Cultural de Curitiba, em fase de captação de patrocínio, pra passar todos meus filmes para o digital. Alguns deles podem ser vistos no meu canal no Youtube.
Dei um tempo e voltei a filmar em 1988, já no formato 16mm : “O Mundo Perdido de Kozák”. (Ver aqui) E a partir daí foram uma série de filmes nos formatos 16 e 35 mm, diversos deles premiados em vários festivais. Sobre a Geração Cinemateca, lembro que pessoas como Berenice Mendes e Homero Teixeira de Carvalho foram de sua primeira turma. Depois vieram cineastas como os Irmãos Schumann, Altenir Silva, Geraldo Pioli, apelidados carinhosamente por Aramis Millarch de Turma do Balão Mágico. Hoje há muita coisa acontecendo e o cinema paranaense continua forte. A partir do Curso de Cinema e Audiovisual da FAP/Unespar, onde sou professor, surgiram vários talentos novos. O Paraná tem cineastas de primeira linha, como Paulo Munhoz, na área de animação, e Marcos Jorge, que está finalizando a segunda parte do seu premiadíssimo “Estômago”. E ainda temos Aly Muritiba, que foi meu aluno, e indicado para a shortlist do Oscar. Agora vai filmar a série “Cidade de Deus”, escolhido por Fernando Meirelles, seu diretor no Cinema.
Em 2019, lancei o documentário de longa-metragem “Espírito de Contradição”, que aborda a vida e obra do filósofo e matemático Newton da Costa, curitibano que se tornou famoso internacionalmente quando criou uma lógica que admite contradições: a Lógica Paraconsistente. Ou seja, as ondas da Geração Cinemateca continuam reverberando.”
Rui Vezzaro foi uma grande revelação do cinema curitibano. Com muitas participações no cinema independente, o diretor e roteirista recebeu diversas premiações pelos seus mais variados trabalhos. Fez o curso de Comunicação Social pela Universidade Federal do Paraná, que abandonou em 1982. Em 1979 ele começou sua carreira trabalhando como estagiário na Fundação Cultural de Curitiba, atividade que exercia enquanto fazia o curso. Após se formar, de 81 a 87, foi professor do Curso Permanente de Teatro no Teatro Guaíra. Neste período realizou vários espetáculos como diretor, cenógrafo, iluminador e professor. Participou de peças como “Drácula” de Eddy Franciosi, “Sonho de Uma Noite de Verão”de Shakespeare, “Lúcifer” de Lord Byron, “Locomoc e Milipili”do Grips de Berlim, “O Grande Circo Místico” de Chico Buarque, “Rock Horror Show” e “Curitiba Velha de Guerra”, ambas com direção de Antonio Carlos Kraide, de quem falaremos com mais detalhes na coluna da primeira quinta-feira de maio da Frente Fria.
De 82 a 86, foi diretor e professor de filmes técnicos e científicos no Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná, onde produziu mais de 60 animes que foram usados nas unidades do Instituto, abrangendo as áreas tecnológicas e de educação artística, cultural e de aerofotometria.
O diretor foi uma grande revelação na 5ª Mostra nacional do Filme Super 8, que aconteceu na cidade em 1979. Seu primeiro filme exibido em Curitiba “Aluminosa Espera do Apocalipse”, com direção coletiva de Rui Vezzaro, Fernando Severo e Peter Lorenzo, foi o mais aplaudido pelo público e pelo júri oficial. A produção segue a linha semiológica de uma imagem verídica da loucura, indo buscar em inscrições enigmáticas e esculturas misteriosas a verdade de um indivíduo que acorda com a certeza de que o mundo poderia arder em chamas. O filme foi feito pela ótica da loucura desse homem, José de Freitas Miranda, que constrói uma cidade destinada a repovoar o mundo depois do Apocalipse.
Vezzaro também foi premiado pelo seu roteiro de “Quingingoo”, em concurso lançado pela Fundação Cultural de Curitiba em 1983. Também foi o grande ganhador do prêmio de Melhor Filme Super 8 no Festival de Cinema de Gramado em 80 e na Mostra de Cinema do CEFET com “Aluminosa Espera do Apocalipse”. Um dos últimos prêmios que Rui recebeu nessa época foi no concurso da Embrafilme, concedido ao seu roteiro de “Noturno”.
Hoje, Rui está aposentado do Cinema e vive numa bela cobertura de frente pro mar em Itapema (SC), de onde nos deu o seguinte depoimento:
RUI VEZZARO: “Eu criei o movimento de Super 8 espontaneamente: foi algo mais sexual do que intelectual . Sempre fui o mais porra louca daquele pessoal. Usava a Cinemateca pra encontrar as meninas, mais do que pra ver os filmes. O Valêncio Xavier ficava meio puto comigo. O começo de tudo foi com Aluminosa. Eu estudava Comunicação Social na Universidade Federal e um estudante me contou aquela historia incrível de um homem rico, que foi considerado louco pela família e internado num hospício. No norte do Paraná fui atrás da historia, mais por um certo humanismo que eu tinha na época. Peguei as dores dele e quis contar sua historia. Nunca mais vi o filme, que eu me lembre. O Jairo Ferreira, cineasta e crítico de cinema da Folha de São Paulo divulgou o filme e ganhei prêmios. Ele escreveu que “Aluminosa” era, tranquilamente, um dos dez melhores curtas nacionais dos últimos anos. “É um estilhaço de bom cinema: pequena aula de panorâmica, personagem visionário, cinema caminhando pra ser música”. Neste mesmo festival da Escola Técnica, também ganhei um prêmio-destaque com “Vitrines”. O Jairo me disse em particular: você é tão genial que não precisa pegar carona em filmes de longa metragem medíocres. Naquela época, em Curitiba, ter um artigo elogioso na Folha de São Paulo te transformava primeiro num herói, depois no cara mais invejado da cidade. Ainda mais que ele me comparou a Rimbaud: o enfant terrible do cinema brasileiro.
Desisti do cinema justamente por causa desta vaidade. Cheguei a apresentar, há uns anos atrás, um roteiro para a Fundação Cultural de Curitiba sobre a Erva Mate. Consegui até um contato para entrevistar o Papa Francisco, que é um aficcionado do mate, mas não consegui apoio. É mais fácil entrevistar o Papa do que depender da boa vontade do meio cinematográfico de Curitiba.”
Beto Carminatti, em entrevista pra Gazeta do Povo, em 2005: “Tem coisas que a gente escolhe e outras que é escolhido.” Assim o cineasta Beto Carminatti, de inconfundível origem italiana, começa a entrevista ao explicar seu amor pelo cinema. Da pequena cidade de Caçador, em Santa Catarina, e em Curitiba desde os 14 anos, Beto iniciou o amor pela arte na Cinemateca, nas rédeas de Valêncio Xavier. “Eu, meu irmão Rui (Vezzaro), e os amigos Fernando (Severo) e Peter (Lorenzo) íamos lá ver festivais promovidos pelo Valêncio”, lembra. Depois de arriscar e consolidar a carreira em vários curtas, dos quais os mais conhecidos são Eternamente e A Deus Menino, o artista assumiu a TV Fera, difusora do Festival de Arte e Cultura da rede Estadual de Ensino. Para o futuro, muitos roteiros em andamento e a promessa do uso de um recurso inédito na história cinematográfica. “Quando filmo sinto solidão, que na verdade é solidez. Brinco, delego, mas sou eu mesmo. Filmar, para mim, é, em resumo, uma grande felicidade.”
E vamos para o último depoimento desta matéria:
BETO CARMINATTI: “Preciso esclarecer que não participei diretamente do movimento da Geração Cinemateca, por ser muito novo naquela época. Ia lá esporadicamente e via a movimentação que acontecia. Lembro que o Rui Vezzaro, meu irmão mais velho, fazia Comunicação Social na UFPR e não sei se ele ganhou um prêmio ou um concurso, mas sei que conseguiu uma verba para fazer um Super 8. E eu fui junto com ele para Água da Jupira, a localidade onde ele fez o documentário “Aluminosa Espera do Apocalipse”, que é a história de um agricultor que constrói uma cidadela para a chegada do fim do mundo. Lembro que a gente tinha uma Brasília azul e nessa viagem fomos eu, o Rui, o Fernando Andrade, que era um amigo, mas sem relação com cinema, e o Peter Lorenzo. O Rui dirigindo o filme e o Peter Lorenzo fazendo a direção de fotografia, mas sempre com Rui muito junto com ele. Mais tarde o Fernando Severo fez a montagem.
Sei que nessa época tinha um pessoal que se reunia que eram o Iwersem, o Fernando Severo, o Rui Vezzaro e as Irmãs Wagner. Deve ter mais gente que eu não lembro o nome, até porque não fazia parte da turma, eu flanava pelos ambientes. Também lembro que o Rui e o Severo trabalhavam no CEFET fazendo filmes didáticos pedagógicos. Numa tarde, eu estava trabalhando na cantina da minha mãe e recebi um telefonema deles avisando que tinha um lote de filme virgem vencido, no Museu de Imagem e do Som (MIS), que iam jogar no lixo. Peguei uma sacola de papel de mercado e fui correndo lá, juntei todos esses cartuchos de filmes Super 8, emprestei um câmera do Peter Lorenzo e fiz o “Delírium Dreams”. A gente tinha uma cantina que ficava entre dois becos no bairro do Portão: o Beco da Mandioca e o Beco do Cemitério e a nossa cantina se chamava Mamma Roma. O Rui tinha acabado de ver o filme com esse nome, dirigido pelo Pasolini, e que tem a atriz italiana Anna Magnani, que lembrava minha mãe, por isso o nome da cantina. O filme eu fazia de tarde, no intervalo do movimento do meio-dia e do final do dia, com garotos mais ou menos da minha idade, que moravam por ali nos becos. Inventei uma história perguntando a eles o que queriam ser quando crescer e para os pais o que eles achavam que os filhos seriam. Eu nunca tinha pego numa câmera e também foi o meu primeiro roteiro escrito mentalmente. Fiz a montagem com uma moviola e uma coladeira, que o Rui e o Fernando me emprestaram na surdina, lá de onde eles trabalhavam. Depois, fiz um documentário junto com um amigo estudante de agronomia, o Mauro Andrade, chamado “Terra”, sobre a colonização do Noroeste do Paraná e todos os desdobramentos da desregrada ocupação, numa época em que o tema Ecologia nem era moda. Com este filme ganhei meu primeiro Kikito, em 1986. Leia no artigo do saudoso Aramis Millarch.
Ainda posso dizer que a experiência do meu filme “Delirium Dreams”, e do meu livro de poemas em prosa “Espelho Selvagem” são a trama de DNA, o princípio ativo do meu instinto animal artístico, que se expressa até hoje em outros trabalhos: nos filmes/ letra de músicas/ poesia/ romance e todas as outras curiosidades que eu tenho…”
Pra encerrar a visão destas imagens, que tanto influenciaram meus versos, só posso deixar a mensagem me enviada por Peter Lorenzo, o diretor de fotografia daquela geração:
“Daqui de Florianópolis, onde vivo desde 2001, considero que é uma bela proposição esta de cruzar as linhas que teciam a malha da cultura, que emergia em Curitiba naqueles anos… Éramos movidos pelo desejo de compreender, criticar, realizar, mostrar, expressar, opinar, marcar o mundo ao redor… A repressão ainda corria pelos muros da sociedade, universidades, sindicatos… Mas sim, gostaria de contribuir, vou tratar de vasculhar minhas caixas em busca de algo…”.