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E se a Americanas usasse blockchain?

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* Antonio Hoffert

No ambiente corporativo, cumprir com as leis não é mais o bastante: qualquer empresa que busca melhorar seus aspectos de governança sabe que precisa reforçar cada vez mais a transparência na relação com seus stakeholders, especialmente se quiser ser reconhecida e certificada por boas práticas de gestão. Como não há uma fórmula a seguir, já que cada setor da economia tem suas próprias urgências e prioridades, a dificuldade em medir o que é uma boa governança pode causar distorções importantes – e, muitas vezes, permanentes.

É o caso recente das Americanas. Chama atenção, por exemplo, a nota alta em “governança corporativa e alta gestão” que a companhia recebeu no Índice de Desenvolvimento Sustentável da B3, publicado ainda no começo do ano, antes da explosão da crise contábil que tomou os noticiários e pegou o mercado financeiro de surpresa — a holding brasileira recebeu nada menos que 91,79 pontos de um total de 100, o que garantia seu lugar entre as vinte empresas mais sustentáveis do país.

O episódio expõe uma das maiores lacunas do “G” da sigla ESG: enquanto conhecemos diversos sistemas e aplicações automatizadas para controle de estoque e gestão de pessoas, por exemplo, falta tecnologia empregada em governança. A demanda parece evidente, já que se trata de um tema transversal nas companhias ao englobar tanto questões éticas quanto operacionais.

É nessa lacuna que a tecnologia blockchain, precursora das criptomoedas, se tornou vital para companhias que precisam ancorar ações reais de ESG. Ao fornecer estrutura para práticas anticorrupção, rastreabilidade da supply chain e possibilitar o registro – de maneira transparente e imutável – sobre a origem e suporte dos créditos de carbono, por exemplo, a blockchain revoluciona. Todos esses pontos poderiam fazer a diferença também em um cenário de interesses distintos e conflitantes, como na miscelânea contábil da Americanas.

Embora a tecnologia seja um protocolo agnóstico que não faz juízo de valor, ou seja, qualquer um registra na blockchain o que bem entender, esse mesmo protocolo se torna um poderoso instrumento antifraude quando aplicada junto a mecanismos de consenso.

Mecanismos de consenso são aplicações capazes de registrar eventos de contratos ou processos que envolvam múltiplas partes. Como os registros passam a ser validados por ambos representantes das empresas, acabam tendo que satisfazer interesses distintos antes de ganhar a perpetuidade. É nesse momento que a blockchain vai além de um protocolo técnico de comunicação e se transforma em um terreno de confiança neutro entre empresas em busca de uma verdade compartilhada.

Fazendo uso de sua credibilidade e tamanho, a varejista atrasou e parcelou o que devia aos seus fornecedores. A prática, que pode ser problemática por diversos pontos de vista, está longe de ser incomum. O problema está no que veio depois, ao não tratar esses atrasos como o que são: dívida.

Se a empresa tivesse adotado mecanismos de consenso –- aplicações de governança lastreadas em blockchain – os credores, sem dúvida, não concordariam com a versão da inexistência do débito, o que impossibilitaria o processo de relativização contábil.

É o crivo do contraditório: em um cenário ideal, todo o balanço contábil seria formado por centenas ou mesmo milhares desses consensos entre empresas e stakeholders, eliminando qualquer dúvida acerca do processo. Os acordos seriam completamente identificáveis, bem como os responsáveis pelas decisões em cada etapa. Os dados, por sua vez, estariam seguros e à disposição em uma linha do tempo clara, acessível, costurada sem qualquer subjetividade e em um ambiente integrado e livre de manipulações, que impossibilita, inclusive, exclusões de informações.

Ações como esta garantem uma empresa mais transparente, o que a torna também mais atrativa aos investidores e pacífica o conselho administrativo, já que o risco de não arcar com suas dívidas diminui consideravelmente pela impossibilidade de ocultação. Com isso, lidaria com juros menores na hora de turbinar o capital de giro e aumentaria seu múltiplo de valuation tangibilizando as alavancas de valor consequentes do processo de governança em blockchain.

Tão importante quanto isso é a possibilidade que a blockchain e as ferramentas de consenso nos dão para uma auditoria de cada etapa por toda a cadeia de valor em torno dessas operações, incluindo clientes, fornecedores, investidores e financiadores. O custo interno de uma possível fraude também não pode ser ignorado: estudo publicado pela Kroll, consultoria americana especializada em investigações corporativas e gestão de risco, publicada no primeiro semestre de 2022, mostra que quatro quintos das grandes empresas globais têm seus negócios “significativamente” afetados por fraudes em geral.

A relação entre natureza humana e gestão corporativa é complexa. Entre Hobbes e Rousseau – “o homem é o lobo do homem” e “o homem nasce bom e a vida é que o corrompe” –, nunca chegamos a um consenso. Com a blockchain, surge um novo paradigma: os stakeholders ficam livres do risco de confiar cegamente nas intenções do gestor sobre o que fazer ou deixar de fazer com a gestão interna, pois não conseguirá, na prática, esconder algo sem o aval da sua cadeia de valor, uma vez que os registros financeiros e de inventário incluem as aprovações de outras partes.

A blockchain mudou a lógica. A disputa sobre a natureza do predicado moral das ações dentro das companhias tende a evoluir com a nova tecnologia e, finalmente, as empresas deixarão de ser os únicos juízes de suas próprias caixas-pretas de governança.

  • * Antonio Hoffert é economista, professor da Grande École de Commerce et de Management e CEO da H3aven,
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