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Francis Bacon

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O poeta e colunista Sergio Viralobos conta na Coluna Frente Fria que mês vai para São Paulo pro batizado da neta Helena e já tem um ótimo programa cultural para ir. Dia 22/3 o Masp inaugura a exposição “Francis Bacon: A Beleza da Carne”, apresentando quatro décadas da produção do artista (1909—1992), um dos meus pintores preferidos do século 20. A seleção do museu terá como foco a representação de figuras masculinas, em geral amantes do pintor, em que a fisicalidade do corpo se mescla com a subversão de símbolos cristãos, a própria história da arte e o erotismo, compondo uma obra inovadora que abriu caminhos para a presença queer na cultura visual.

O professor da Universidade de Birmingham, Gregory Salter, um dos convidados para o seminário promovido pelo Masp que antecedeu esta mostra, lembra em seu artigo “Francis Bacon and Queer Intimacy in Post-War London” (2017) que quando a pintura “Duas Figuras” (“Two Figures”) foi exposta pela primeira vez, em 1953, na Galeria Hannover, em Londres, de Erica Brausen, a homossexualidade ainda era proibida na Inglaterra, e punida com prisão.

A pintura foi composta a partir de uma fotografia da década de 1880, de Eadweard Muybridge, fotógrafo que congelou os gestos e os movimentos dos corpos humanos e de animais, que retrata dois homens nus lutando no chão. O pintor retrabalhou a imagem para incluir a cama, o quarto, suas próprias feições distorcidas e as de seu amante à época, Peter Lacy.

“Manipulo os corpos de Muybridge nas formas de corpos que conheci”, disse Bacon depois. Brausen, com medo da possível repercussão negativa, colocou a pintura em uma posição superior no fundo da galeria, longe da vista direta dos visitantes.

Desde então esta pintura teve uma existência “semipública”, segundo o professor, seja por ter sido raramente exibida (a tela pertenceu ao artista Lucien Freud, que de amigo passou a ser inimigo declarado de Bacon e não a emprestava por nada), seja por sempre ser vista sob o filtro da fotografia de Muybridge, seguindo a interpretação feita por David Sylvester.

Na biografia que Michael Peppiatt, seu amigo de bar e festas, publicou uns anos atrás (“Francis Bacon: Anatomy of an Enigma”), o pintor revê a sua vida como uma busca incessante pelo momento, pelo tempo, pela passagem do que não tem lugar ou permanência. “A vida em si é apenas uma série de sensações. Nós apenas vagamos de momento a momento. Toda minha vida tem sido assim, sabe, vagando de bar em bar, pessoa para pessoa, instante a instante.”

Bacon nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1909, de um pai australiano e mãe inglesa. Seu pai, Viande Bacon, era descendente do filósofo homônimo britânico que viveu nos séculos 16 e 17, e foi um veterano da Segunda Guerra dos Bôeres, se tornando depois um treinador de corrida de cavalos. Sua mãe Winnie, herdeira de um negócio de aço e de uma mina de carvão, era notável pela sua natureza saliente, gregária, um total contraste em relação ao seu marido. Francis foi cuidado pela enfermeira da família, Jessie Lightfoot.

Criança com asma e muitas alergias, tinha pouca aptidão a atividades físicas, o que contribuiu para acentuar uma relação conflituosa com o pai, um homem enérgico. A homossexualidade de Bacon foi o estopim para o rompimento. Ele foi expulso de casa em 1926, aos 16 anos, depois que o pai o flagrou experimentando roupas íntimas da mãe.

Em Londres, sobreviveu no início da mesada de £3 por semana que sua mãe enviava, empregos temporários, de encontros furtivos com homens e pequenos furtos. Vivia uma vida simples, sempre lendo Nietzsche. Foi demitido de um emprego de telefonista de uma loja de roupas femininas em Poland Street, Soho, depois do dono do estabelecimento receber uma carta anônima.

Em 1927, viveu por um ano e meio em Paris. Entre outras novas experiências, a visita a uma exibição com 106 pinturas de Picasso, na Galeria Paul Rosenberg, despertou o seu interesse artístico. A partir dos anos 1930 iniciou sua carreira como artista. A sua primeira exposição individual na Lefevre Gallery, em 1945, provocou um choque e não foi bem recebida. Toda a gente estava farta de guerra e de horrores, só se falava da “construção da paz” e as imagens de entranhas dos quadros de Bacon, com os seus tons sanguíneos, provocaram mais repulsa do que admiração.

Depois do espanto inicial, Bacon caiu no gosto público e hoje é considerado um dos principais renovadores da pintura figurativa no século 20, retratando especialmente figuras masculinas, em retratos e nus. É conhecido por sua representação visceral da condição humana, que ele traduziu em texturas espessas e oleosas, conferindo às figuras formas quase abstratas. Bacon desafiou convenções estéticas e emocionais, criando um legado artístico que continua a fascinar e provocar reflexões críticas. As pinturas reúnem grande variedade de fontes iconográficas, revisitando temas religiosos, referências da história da arte e percepções eróticas sobre o corpo.

O estilo distintivo de Bacon é caracterizado por suas figuras distorcidas e deformadas, muitas vezes retratadas em ambientes claustrofóbicos e opressivos. Suas pinturas frequentemente apresentam cores vibrantes contrastando com sombras profundas, criando uma atmosfera de tensão e desconforto. Bacon desafia as convenções de representação realista, explorando a essência emocional e psicológica de seus temas.

Bacon declarou em mais de uma ocasião que nós, seres humanos, somos apenas animais, com os mesmos desejos, necessidades, instinto e finitude. “Somos carne, somos potenciais carcaças”, ele dizia.

Nas inúmeras variações que o pintor fez do retrato do “Papa Inocêncio X”, pintado por Velázquez, culminando com a versão intitulada “Estudo Após o Retrato de Inocêncio X de Velázquez”, aparece a figura do alto sacerdote sentado, gritando como um animal selvagem.

Bacon era obcecado por esta pintura de Velázquez. Afirmava que gostaria de saber pintar como o espanhol, mas o que realmente importa nessas suas releituras, fazendo Gilles Deleuze afirmar que seriam novas versões da pintura clássica, é a possibilidade de dar a ver a força bruta e instintiva do ser irrompendo e atravessando as aparências, a autorrepresentação de si mesmo, a pose política, a santidade, as vestes, a pele, tudo.

No artigo “Carne viva” escrito por Luiz Armando Bagolin para a Folha de São Paulo, de 17/03/2024, fiquei sabendo o seguinte:

“Em outubro de 1971, às vésperas da abertura de sua primeira grande retrospectiva na França, no Grand Palais, em Paris, Francis Bacon se deparava com mais uma grande tragédia em sua vida: um de seus amantes, George Dyer, acabara de cometer suicídio, com uma overdose de bebida e barbitúricos, no quarto de hotel onde estavam hospedados.

O corpo dele fora encontrado no banheiro, sentado no vaso sanitário, por Bacon e seus assistentes, Terry Danziger-Miles e Valerie Beston, que então solicitaram à gerência do hotel não divulgar nada sobre a morte durante pelo menos dois dias.

Bacon foi ao seu vernissage, atendeu galeristas, jornalistas, críticos de arte e o público interessado em sua obra de modo impassível, sem denunciar o seu estado de perturbação interior. Segundo John Russel, o artista demonstrou ali e nos dias subsequentes, em que teve que lidar com o funeral, familiares e amigos de Dyer, um autocontrole “ao qual poucos de nós poderiam aspirar”.

Mais tarde Bacon diria que um conjunto de “demônios, desastres e perdas” o assombrava como se fosse sua própria versão da tragédia grega “Eumênides”.

Para tentar pelo menos aplacar o sentimento de desolação e solidão que o preencheu, nos anos seguintes Bacon pintou uma série de retratos sombrios de Dyer e uma série de três “Trípticos Negros” (“The Black Triptytchs”, 1972-1974), descrevendo o amante, antes, durante e depois do suicídio. É como se o pintor quisesse descrever cruamente a vida e a morte, quadro a quadro, numa espécie de storyboard cinematográfico, sem, no entanto, conseguir deter o curso dos acontecimentos ou mudar o seu destino. A arte, neste sentido, mais do que sublimar um sentimento de perda, o reforçaria, escancarando o poder da impotência face aos acontecimentos prosaicos ou trágicos da sua vida.”

Em 1992, sua asma crônica tornou-se um problema respiratório mais grave. Ao chegar à Espanha para visitar um amante, acabou internado. Morreu em 28 de abril, aos 82 anos, após ataque cardíaco em Madri. E assim findou a vida de um gênio marcada por tumultos e tragédias pessoais, experiências que se refletiriam profundamente em sua arte. Testemunha das duas guerras mundiais e confrontando sua própria sexualidade em uma época de repressão, Bacon encontrou na pintura uma forma de dar voz às suas angústias interiores e às inquietações de sua época. É o que certamente verei na exposição “Francis Bacon: A Beleza da Carne”, pela primeira vez no Brasil.

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