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O sarcasmo da poesia de Amarildo Anzolin

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A revista de poesia e crítica literária “Sibila” conta que Central de Despachos Nossa Senhora das Graças, novo livro de Amarildo Anzolin, não é apenas um portal entre esse e outros mundos nos quais, entre mortos e feridos, todos estamos hospitalizados. Não se resume também a um velho entreposto aduaneiro, onde, entre nuvens de remorsos, pagamos e cobramos o nosso quinhão nesse octógono de almas, seres, coisas, gentes, bichos, ideias, memórias, sentimentos e forças brutas.

Central de Despachos Nossa Senhora das Graças é principalmente o lugar de intercâmbio clandestino entre diversas dimensões. Nessa fronteira aberta, Amarildo Anzolin mostra, sem condescendência e com um humor para lá de esperto, o parentesco entre o despacho burocrático da papelada que nos libera para nascer, viver e morrer e os despachos das esquinas de onde as outras camadas da realidade nos espiam com seus olhos de magia e horror. Encastelado em sua encruzilhada de estimação na cidade cinza, cínica, moral e cívica, Amarildo inventa suas fusões, encanta suas poções e, nas horas vagas entre as marés, deixa explodir sem dó os laboratórios de desumanidade que prometem nos curar de nós mesmos em troca de uma alma que ainda nem chegamos a entender direito. 

Por essas, e por muitas outras que você vai gostar de descobrir, a poesia de Amarildo é, sobretudo, uma aventura vertiginosa. Nas temáticas. Nas personagens. Nas referências. Nos ritmos. Nas locações. No prazer da leitura de suas hábeis, divertidas e desconcertantes descobertas de linguagem que o colocam, certamente, entre os melhores de sua geração. E, pela hipnótica sonoridade, com lugar garantido lá na Torre da Canção que Leonard Cohen nos prometeu.

Trata-se de uma obra vertiginosa, acelerada, veloz, vale repetir. Viva, orgânica, com coração e entranhas, com sangue nas veias e artérias, que nos movimenta e nos faz pisar no freio com sua avassaladora sinceridade. Portanto, não se engane com a profusão babélica de nomes, situações, surpresas, deboches, preces, enredos e outros fios trançados por Amarildo. É sempre ele dizendo presente. De novo ângulo. De outro ponto de vista. Com outra lente. Encarnado em outras vestes. Sorte nossa que a Central de Despachos Nossa Senhora das Graças chega em má hora e, por isso mesmo, na melhor hora possível. Na hora da sede. Sirva-se do elixir do exílio nesse tempo em que multidões consideram sensato transformar o mundo em um imenso cromaqui com adereços plásticos coloridos e luzinhas piscantes. Prepare-se. Cada letra guarda uma surpresa. E, mesmo que às vezes doa, mesmo que às vezes sangre, mesmo que às vezes morra, a vida continua cantando, mais rápido que a caneta.

MAQUETE-MACUMBA

Debaixo da espinha fria do Minhocão uma família inteira decorou
o piso
(o filho mais velho locou o alpendre do Santander pra sua nova
família)
com sofás rasgados cadeiras plásticas encardidas
o criado-mudo da caixa de feira sustenta uma tv de plasma que
tem as costas coladas na coluna
a corrente elétrica desce desde a pele do asfalto do elevado
a cama é um queijo de espuma esburacada e fedida
a criança menor lê um tablet quebrado
um cão chuta bola
um sadhu involuntário com saco nas costas para pra espiar o
samba-enredo que homenageia uma novela antiga
maçãs mordidas alguns ossos cascas de banana marmitas de
isopor sujas de feijão compõem a maquete pra quem passa

OS DENTES DO PULMÃO MASCAM O CORAÇÃO NUM PRATO JUSTO

Os dentes do pulmão mascam o coração num prato justo
mosca cansada aprecia bosta em busca da mocsa
os números são letras que falam por si
a alma do vento tem corpo invisível
tanto tipo de carma sempre o mesmo com outra faceta
senhora com tanto aporte teve que ir a Nova York comprar
uma maçaneta
a forquilha dos dedos esgana um cigarro
um convicto apaga sua imagem no espelho embaçado
uma traça cega se vê morcego se cola no teto esquece de acordar
na chuva um casal se beija de costas
a ideia de um sol de vime ilumina uma réstia do dia pluvial
o enxerto na ameixeira remonta um cueiro com espanto sexual
ver alguém tirar a roupa é ver uma flor nascer para trás
o sol é um furúnculo no horizonte do cais
avó libanesa faz um acorde na sala decorada de destroços
peixes nadam no fogo do deserto
a mentira é uma medula
anda de cadeira de rodas numa montanha-russa

QUASE READY-MADE 2 (JARA)

Imigrante nada num mar de lixo tóxico
para entrar na Espanha
o lixo e ele não são estranhos entre si
do ponto de vista de quem o retira
ou de quem o pôs
ele também sabe que se paga mais pelo lixo
do que se pagaria a ele
intui que o dinheiro acha feio o que não é espelho
e nada
do outro lado da praia de Ceuta
narcisos em caquinhos cintilantes giram arrogantes e anônimos
no centro da pista quase escura
nada e lembra Jara
deixado como lixo na veia da viela da favela
que o sangue valha
mais que pontos de bactéria numa lâmina de laboratório
que a pilha vazante de ácido sulfúrico do corpo inerte do
marroquino
amalgamado em caleidoscópicos e cortantes cacos de garrafa de
vidro
nada
e veio à tona de um cinzeiro
Jara nem isso
estrela de peito fulgurante era naquela hora saco de estopa
vazando sangue bucha de balão alçando o Chile em sua
imaginação
um poeta não faz versos com as mãos

CAMP NO

Messi fica de cócoras ao fim do jogo
vomita pela última vez no Camp No
avisa por Burofax que não quer mais vestir a camisa blaugrana
no comunicado usa uma epígrafe de Maradona
“A Catalunha é um grande lugar para viver. Menos para um
jogador de futebol”
o mercado reage as bolsas azedam
as camisas 10 são retiradas da loja oficial do clube
o vírus fica em stand by
é cada vez mais nítido que viver é um drama
mesmo num dia de sol com cães na grama e você a tiracolo
teu sorriso lindo claro é uma ferida em plena temporada de férias
poetas de cara lavada entregam livros lavados de poesia
numa fila de bonecos de posto sorridentes e tremulantes
comentaristas esportivos se mimetizam de pastores
em batalhas campais com claque e djs
não há torcida a grama é artificial
o drama só não é maior porque você diz que chega mês que vem
a realidade se enforcou com a gravata do analista
o mito tem cores graves caminha lento empunhando a própria
lápide
um empreiteiro batiza o naming rights do estádio que ele próprio
levantou
com sobra de campanha que elegeu o senador

REFRÃO NOSSO DE CADA DIA 3

Cortaram o coqueiro
atrás da minha janela
ela recortava seu tronco da canela pra cima
sua crina era termômetro de vento
bússola de vento
o clima era de indefeso e bondade
deixava partituras de dança tatuadas no corpo do céu
cortaram com mão braço e foice
foi-se como mão e braço cortados a foice
podia compor o bike atelier
decorar a sala de gamificação
cortaram famélicos homens a mando
do bando de outros mais famélicos
não de fome fome sede sede
de ânsia de fama e outra fome
cortaram esse coqueiro que dá coco
oco agora como todo conforto financiado
cortaram como cortam
zombam do abastecimento de água todo dia
um carro em uma das vagas da garagem
vai dormir sobre seus nervos fósseis
como unha encravada na terra rubra
abaixo de piso e tubulações
feio como qualquer hálux

FAKES & LIKES

Cabral alertou para não poetizar a poesia
Parra acelerou a despoetização
se há uma semelhança na predileção do galho a flor
há uma diferença entre não florear e despetalar
Parra avisou que volta logo
Cabral rezou bem na hora do gol
em que altura da haste fica a flor?
a quanto vai o sarrafo do colchão?

a labuta do marceneiro na tábua com corte lixa lixa
até a última lixa ser a palma da mão
a flauta da vida na sarjeta do solitário trovador que lima
sua unha no meio-fio da navalha da vastidão
(o leitor cada vez mais à míngua à traça toda vez
que procura a poesia a não ser que seja alguma de pelo menos
20 anos atrás
acaba que constrangido torce para que até o fim algum poema
surja a poesia)

Eliot ora cancelado o oco não vem da tradição do velho
mas do novo atual poetas ocos poesia esvaziada
não por conceito que seria terreno fértil
mas por mero confeito estéril
gota seca sem nexo
do número 3 da Kensington Court Gardens perguntaria a Valerie
Fletcher
se ouviu bem o que se ouve hoje
e ainda agora alça estala as pálpebras no Poets Corner da Abadia
de Westminster
e diz a Charles Dickens ao seu lado
a fala com os mortos é feita com uma fala de fogo muito além da
fala dos vivos
e em East Coker suas cinzas crepitam numa sonoridade que vai
do começo ao fim
e do fim ao começo
e pensa que ponderou o passado
se ressente que nem roçam o presente e ainda troçam do futuro
este céu branco que não é de nuvens

não se veem mais linhas
nem finas nem grossas
não há linha
alguma em tanto novelo
empinam papagaio em ventilador de fraca potência
oficinas & antologias
de madames pagas por madames
madames de todos os sexos
peruas abastadas
madames endinheiradas
em nada com as trobairitz nell´Occitania
nem com os grandes trovadores patrocinados
com míseros modelos
não honram as cuecas de Carlos
no fio do tempo escasso encardido
pelo labirinto da lama

instam com pilhas de livros na ilha de edição do Instagram
vistosas lombadas desfilam no perfil do poeta
nenhum autor respinga no poema em banho-maria
com seus cavalos domésticos a trote de carrossel

UM CATATAU HOJE CHEGA CUSTAR 900

Muita coisa se explica
quando se entende
porque o aeroporto da Madeira
se chama Cristiano Ronaldo
e não Herberto Helder

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